A (in) certeza cartesiana e a Peste freudiana.

A (in) certeza cartesiana e a Peste freudiana.

Je pense, donc je suis. Cogito, ergo sum.

Mal sabia Descartes que iria provocar tanto barulho na psicanálise com o seu: penso, logo existo, frase fundadora da modernidade.

A (in) certeza cartesiana e a peste freudiana.
Je pense, donc je suis.

 Cogito, ergo sum. Mal sabia Descartes que iria provocar tanto barulho na psicanálise com o seu: penso, logo existo, frase fundadora da modernidade.

Porém, ao mesmo tempo, fornece a exata oportunidade para que esta apresente sua contraproposta de formulação de um estatuto mais radical para o sujeito humano.

Para o pensamento cartesiano, o lugar da verdade do sujeito está na consciência, isto é, o predicado está incluído no sujeito.

O sujeito cartesiano é o sujeito da ciência.

Para a psicanálise, o sujeito é sujeito do desejo.

Para Descartes ser pensante equivale a ser consciente. Há uma identidade entre cogito e consciência.

A partir desta forma tradicional de situar o sujeito, a partir do cartesianismo, o estatuto do sujeito humano passou a ser referido como o do universo consciente.

Isto é, o ser-humano é tudo aquilo quanto ele sabe sobre si.

Tudo aquilo que pode dizer de si mesmo e das coisas. Seu consciente, seu pensamento é seu mundo, sua verdade, seu limite, sua expressão final de ser-humano.

A peste freudiana demolirá este frágil patamar.

Freud costumava referir-se à sua descoberta, a psicanálise, como sendo a peste.

E é esta, precisamente, a proposta de Lacan.

Recolocar as formulações freudianas com toda a sua virulência, de modo que correspondam fielmente às palavras de Freud, i.e., como questionadoras deste sujeito da certeza; deste sujeito que diz: EU.

A peste freudiana trouxe algo que modifica singularmente o horizonte do conhecimento do homem sobre si mesmo e sobre o seu mundo.

A tradição filosófica, reafirmada em Descartes, assegura a este frágil primata, o homem, que ele é senhor de si mesmo, de seus pensamentos, que ele se conhece.

A extensão de si mesmo é a extensão de sua consciência.

O mais é Deus.

A radicalidade da descoberta (a peste) freudiana reside exatamente no rompimento desta certeza.

A partir do reconhecimento da existência de outras formulações, que estão para além do sujeito: sonhos, atos falhos, chistes e sintomas, a psicanálise procurará, então, este outro sujeito, desta incerteza no sujeito cartesianamente instituído.

Até o surgimento de Freud, tratava-se mais de reprimir e negar o desejo do que de estudá-lo.

A psicanálise irá, então, em busca deste outro sujeito; deste sujeito do desejo, deste sujeito do inconsciente.

Exatamente a subversão da Biologia é o que nos indicam as formulações freudianas, no sentido da indicação da insuficiência da plataforma biológica como instância garantidora do modo de tornar-se humano.

Nascer com todos os atributos biológicos, de homem ou de mulher, não assegura o exato caminho de ser.

 Este deverá ser encontrado em outro lugar (no simbólico).

Aqui está a subversão trazida pelo discurso freudiano.

O animal humano, provido somente de todo o suporte biológico e apenas dele, não existe como ser-humano, existe apenas como animal.

A biologia, apenas, não garante o ser-humano.

O animal humano, para existir como tal, deve ser submetido a uma operação, que todos os demais animais não necessitam sofrer.

Ele deve ser levado de um mundo natural de leis e funcionamentos meramente biológicos, de contacto imediato com o ambiente (como os demais animais), a um mundo artificial, cultural e simbólico. Simbólico, onde o natural, o imediato, é tratado via símbolo.

O animal humano para existir como tal, deve passar do natural ao simbólico, do imediato ao mediato.

Do objeto ao símbolo. Do não verbal ao verbal. Deve atingir a palavra. Deve aceder à linguagem.

A neurose, desta forma, é privilégio humano.

Neste processo de passagem do natural ao simbólico, a sociedade é instalada no sujeito. Neste processo (urverdrangung) nasce o inconsciente.

A psicanálise é uma antropogênese, uma descrição da gênese do animal humano.

Propõe-se a mostrar que este processo de tornar-se humano não é natural, no sentido de que a nossos olhos seria um processo linear, seguro e previamente guiado por coordenadas biológicas.

Ela nos mostra que a efetividade do processo de produção do humano depende da eficácia de determinadas inscrições que devem ser feitas sobre o infans.

Aqui está o tornar-se humano.

Feitas estas inscrições sobre o sujeito, i.e., instalando nele a sexualidade, temos a neurose; não instalando temos a psicose (exclusão de ser-no-mundo simbólico).

O Ser é humano enquanto é um ser sexual. A única possibilidade de existir, para o ser humano, é existir enquanto ser dotado de sexualidade.

Aqui está a peste freudiana, de novo.

O infans, ao nascer, nada sabe sobre si, dos outros e do mundo. Além disso, deverá ser transferido do natural ao simbólico.

É através do Outro, seu suporte, que lerá o alfabeto que irá determinar-lhe seu estatuto de ser-cultural, do existir como humano.

É este Outro que lhe dirá quem ele é; Temos, neste processo, o primeiro surgimento de uma noção de si, do primeiro esboço do ego do sujeito.

A primeira e decisiva alienação numa imagem enquistada de si-mesmo.

Alienação do sujeito de sua verdade, da verdade de seu inconsciente.

Luiz Carlos Santuário

(Janela Lacaniana)