Significação Antitética das Palavras Primitivas

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE MEDICINA PSICOSSOMÁTICA DO DISTRITO FEDERAL-ABMPDF

 

 

Curso de Estudo das Obras de Freud e Pós Freud

 

 

SIGNIFICAÇÃO

 ANTITÉTICA

 PALAVRAS

PRIMITIVAS

 

MODULO – 11

 

Comunicação com o “inconsciente”.

 

Dilma de Fátima Queiroz

Turma A.S. 2019 DF

Significação Antitética das Palavras Primitivas
(Sigmund Freud)

Algumas palavras guardam sua história no corpo.

Pensamento antitético, isto é, opensaratravés de pares de opostos, uma das características constitutivas da obra freudiana? Em outras palavras, é a obra de Freud marcada por conflitos entre pares de opostos.

E algumas trazem em si as marcas de opostos que convivem sem formar unidade, mas numa palavra única. É a proposição de que essas palavras demonstram o que a atividade dos sonhos revela: a possibilidade de unidade de opostos que guardem suas peculiaridades. São dois sentidos contrários que convivem, mas não dão surgimento a um terceiro elemento: são um e dois. É o que afirma Sigmund Freud, pai e patrono da psicanálise, em “A Significação Antitética das Palavras Primitivas” (In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. XI. Rio de Janeiro: Imago, 1970. p. 141-6).

Trata-se de um trabalho no qual Freud aponta para a importância do significante (a palavra em si) para a psicanálise, como foi mais aprofundado por Lacan posteriormente. Chamo atenção para o fato de que Freud baseou suas ideias nas comparações etimológicas entre palavras de línguas distintas, no que diz respeito ao processo de metátase (fenômeno da inversão de som; transposição dos termos em um raciocínio), do filólogo Abel, o que é inusitado, vez que a filologia ainda estava incipiente naquele momento do século XIX. Esse filólogo mostrou que, na língua egípcia, que ele considera uma relíquia única de um mundo primitivo, há um grande número de vocábulos com duas significações, uma das quais é o oposto exato da outra.

Entre os principais exemplos de palavras antitéticas nesse artigo de Freud, destaco a opinião freudiana de que o “não” parece não existir, no que se refere aos sonhos. Eles mostram uma tendência específica para fazer combinações de contrários numa unidade ou para representá-los como uma e mesma coisa. Também é destacável o fato de que no idioma egípcio antigo há excentricidades, a saber: palavras compostas em que dois vocábulos de significações antitéticas se unem de modo a formar um composto que tem a significação de um apenas de seus dois componentes; compostos como “velho-jovem”, “longe-perto”, “ligar-cortar”, “fora-dentro”, que, apesar de combinarem os extremos de diferença, significam somente “jovem”, “perto”, “ligar” e “dentro”, respectivamente. Com o tempo, portanto, essa ambiguidade desapareceu da linguagem.

Freud compara o funcionamento da elaboração dos sonhos com o escrito do filólogo Karl Abel sobre a língua egípcia primitiva. Essa interlocução entre o estudo da língua primitiva e a psicanálise se deu por Freud com o intuito de encontrar apoio em diferentes campos do saber para fundamentar o conceito de inconsciente como um sistema. No caso percebe que ele é estruturado como uma linguagem e pode fazer uso desse mecanismo linguístico para se fazer presente.Em seu escrito Abel identifica várias palavras em egípcio com duas significações, sendo que uma era seu exato oposto. Entre os diversos exemplos de unidades de pares antitéticos estava a palavra latina sacer que significa, ao mesmo tempo, sagrado e maldito. E é justamente essa utilização do mesmo meio de representação para expressar os contrários que Freud percebe como semelhante ao mecanismo de elaboração dos sonhos.

“…não podemos escapar à suspeita de que, melhor entenderíamos e traduziríamos a língua dos sonhos se soubéssemos mais sobre o desenvolvimento da linguagem”.

 Em A Interpretação dos Sonhos, como citado pelo próprio autor no presente artigo, os sonhos demonstram a preferência de combinar contrários em uma unidade, bem como são livres na representação contrária de qualquer elemento de algum desejo, não permitindo que se saiba de imediato se o pensamento do sonho é positivo ou negativo.

Como explica Abel própria definição de um conceito deve passar necessariamente por aquilo que ele não é, pois se tudo fosse idêntico, não faria sentido distingui-los e existiria apenas uma palavra. É através da heterogeneidade que as ideias se tornam claras. E na medida em que a linguagem vai se desenvolvendo, elas vão se tornando cada vez mais claras, fazendo com que a ambiguidade desapareça e se tornem suficientemente familiares aos homens.

Freud percebeu muito bem como a palavra carrega, em seu aspecto primitivo, o caráter ambíguo do real. Em “A significação antitética das palavras primitivas” (1910), ele demonstra como, nas línguas mais antigas, tal como ocorrem também nos sonhos, há inúmeras palavras com dupla significação, sendo que uma delas representa o exato oposto da outra. Assim, primitivamente, a palavra que designaria luz também significaria escuridão, e a palavra que designaria forte, significaria ao mesmo tempo, fraco, e assim por diante. Este aparente enigma antitético expresso nas palavras primitivas seria explicado pelo modo comparativo como pensamos e significamos o mundo; o claro só pode ser concebido e conhecido em comparação com o escuro, o forte em comparação com o fraco, etc. Daí que é uma aquisição não muito tardia, no humano, a capacidade de separar o direito e o avesso do conceito, e a pensar em um deles sem a comparação consciente com o seu oposto.

A conclusão freudiana é que, mediante o trabalho civilizatório que solicita coerência ao ser, o sentido antitético da palavra sofre recalque e passa a existir e a exercer seus efeitos desconcertantes a partir do inconsciente. O eu, nesse sentido, seria uma espécie de censor da ditadura que procura vetar ou, pelo menos disfarçar, o sentido ambíguo da palavra para manter uma aparente coerência discursiva.

Por isso o manejo da língua é sempre vacilante e, deveras, carrega um toque de fracasso, algo que os poetas e escritores conhecem muito bem. Há sempre um sentido que escapa no discurso, um dizer que não diz tudo, uma palavra que não é bem a que se quer, e outra que, dita casualmente, vale por mil.O escritor, o poeta e também o psicanalista conhecem bem o sentido polifônico da língua e a tem como sua principal ferramenta de trabalho. São artesãos da palavra, manejando-a de modo a ampliar e a complexificar o seu uso comunicativo. Compreendem-na não em sua função concreta, mas retomam-na em sua função metafórica, criativa e transformadora do ser. Por isso Freud designou sua psicanálise como uma cura pela palavra.

Mas o que ele queria dizer com isso?Para Freud, um sentimento ou uma ideia que não se casa com uma palavra, não existe no mundo humano e, portanto, não possui nenhuma efetividade transformadora sobre este. Um sentimento ou uma ideia sobre o qual não temos competência discursiva para descrever, não nos vale de absolutamente nada. Um grito não tem significado humano algum, enquanto não puder vir acompanhado de palavras que o adjetivem e o insiram no mundo dos significados compartilhados.

Daí que, para Freud, é a palavra que funda a realidade psíquica e consequentemente o ser. Esta perspectiva da palavra enquanto instauradora dos sentidos e afetos humanos, podemos encontrar no livro “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago.Em conversa entre a esposa do médico e o escritor cego, indagada por este se haveria palavras demais no mundo, ela responde que não se trata disso. Trata-se de termos sentimentos de menos ou da falta de palavras adequadas para expressá-los, o que significaria o mesmo que perdê-los.Ora, sentimentos perdidos pela impossibilidade de encontrarmos palavras que os expressem são sentimentos que não servem à sua finalidade última, que é a comunicação intersubjetiva. Sentimentos que não fazem parceria amorosa com as palavras são como seres condenados a nunca nascer.

O escritor, o poeta, assim como o psicanalista são, portanto, dadores de nomes. Ao nomear um sentimento difuso a um paciente, ao descrever uma situação humana inominável, o analista e o poeta, respectivamente, criam realidades humanas passíveis de serem narrativizadas e, portanto, pensadas.Na narrativa de Saramago, em que a morte da palavra é anunciada, podemos intuir uma espécie de crise narrativa do sujeito contemporâneo. Nunca se soube tanto do homem; nunca o homem teve tão enorme dificuldade em falar si mesmo. Nunca se escreveu e falou tanto como hoje e nunca se sofreu de tamanho mutismo das boas narrativas de si.

Portanto, a máxima freudiana da cura pela palavra continua valendo como nunca. A palavra cura; ela sutura as bordas do vazio; areja o solo asséptico do senso-comum; cria realidades com as quais ainda podemos sonhar; tece pontes e pactos; subverte a ordem séria das coisas; brinca com o sentido; costura silêncios e sons.

Resumo

Este artigo pretende evidenciar determinados aspectos da leitura estruturalista de Benveniste sobre as fundamentações linguísticas encontradas em Freud, mais propriamente em seu texto “Sobre o sentido antitético das palavras primitivas”. Coloca-se em diálogo o artigo de Benveniste intitulado “Observações sobre a função da linguagem na descoberta freudiana” com as teorizações linguísticas apresentadas por Freud em seu texto supracitado. Busca-se, assim, uma interface entre os estudos linguísticos e psicanalíticos, problematizando a noção de língua primitiva trazida por Freud e confrontando-a com pressupostos da Linguística Estrutural defendida por Benveniste. A abordagem tecida é eminentemente teórica, buscando iluminar os pontos de divergência entre a concepção de linguagem na perspectiva de Freud e de Benveniste. Para atingir esse objetivo, buscou-se o estudo sobre a negação desenvolvida por Freud em seu texto “A negativa” e colocou-a em relação com as observações de Benveniste sobre o linguista Carl Abel, forte influência linguística no pensamento freudiano desenvolvido no texto “Sobre o sentido antitético das palavras primitivas”. Como conclusão, torna-se possível compreender que, se a língua é uma estrutura e um sistema, ela possui um caráter universal e a-histórico, o que contesta a tese freudiana sobre a existência de línguas primitivas.

 “A linguagem serve não só para expressar os próprios pensamentos, mas, essencialmente, para comunicá-los aos outros”.

Benveniste: breves dados históricos

 

Émile Benveniste (1902-1976) é reconhecido como o principal representante da Linguística da Enunciação e da corrente que se tornou conhecida como teorias da enunciação. Foi um linguista comparatista, saussureano e um importante especialista em indo-europeu. Judeu nascido em Alep, Síria, dedicou-se aos estudos iranianos, da gramática comparada das línguas europeias e à linguística em geral. Especialista em indo-europeu, o maior indo-europeísta do século vinte ao lado de Jerzy Kurylowicz, comparatista de inúmeras línguas antigas e modernas, Benveniste é, sobretudo, reconhecido e valorizado por reintroduzir no campo da Linguística o sujeito, até então recalcado, por meio de sua abordagem enunciativa. Dosse (1993) se vale de um testemunho de Ducrot que declara que Benveniste é o linguista a quem ele mais deve, por demonstrar que o sistema linguístico, sem deixar de constituir um sistema, devia levar em consideração os fenômenos da enunciação.

O conceito de enunciação é, sem dúvida, a tentativa mais importante para ultrapassar os limites da linguística da língua. Nesse contexto histórico, Benveniste foi o primeiro linguista a desenvolver uma teoria linguística que engloba as dimensões do sujeito e do discurso, a partir do pensamento de Saussure. Por essa razão, mas não apenas por ela, Dessons (2006) define Benveniste como um linguista à parte. Por ser o introdutor da noção de enunciação, na Linguística de seu tempo, ele exerceu importante influência na elaboração do conceito fundamental nos estudos da linguagem: o discurso. Benveniste demonstrou muito precocemente uma percepção aguda da noção de discurso ao explicitar a insuficiência do conceito de fala no aparato conceitual de Saussure, ainda que a fala trilhe o caminho para o universo do discurso.

Para Dessons (2006), a noção de discurso abre o caminho para se refletir sobre a atividade da linguagem no conjunto das ciências humanas e sociais. De fato, a obra de Benveniste reverbera de maneira nítida não apenas no campo dos estudos linguísticos ao constituir uma antropologia histórica da linguagem que afetou a filosofia, a sociologia, a psicanálise e a literatura. Esse transbordamento para outros campos das ciências humanas e sociais é evidenciado nas palavras de Dosse (1993), ao colocar que Benveniste deixou uma imagem de pesquisador independente, não pertencendo a nenhuma escola e tendo sobre a linguagem pontos de vista originais e, por vezes, revolucionários. Ele foi conhecido por atravessar sua carreira sem se comprometer com movimentos específicos de cada época, mantendo-se firme em seu próprio horizonte teórico como um autêntico pensador solitário. No entanto, ainda que suas reflexões possuam uma originalidade muito evidente, é certo que seu pensamento não pode ser desvencilhado do contexto histórico, mais especificamente, o Estruturalismo. O contexto histórico no qual suas teorias sobre o sujeito e a enunciação foram desenvolvidas consistiu, no auge do Estruturalismo, o que confere ao linguista ser reconhecido por François Dosse (1993) como a exceção francesa.

A fundamental inovação de Benveniste, que lhe confere o reconhecimento de ser a exceção francesa, é explicada pelo fato de articular sujeito e estrutura, assim como fez Lacan posteriormente no campo da Psicanálise. O linguista propôs uma ruptura conceitual na comunidade linguística de seu tempo: manter-se fiel ao pensamento de Saussure e a sua noção de estrutura e, no mesmo âmbito do projeto saussurerano, tratar do sujeito e da enunciação. É um posicionamento paradoxal que Benveniste compartilha com Lacan no que pese as devidas diferenças que separam ambos os pensadores, pois, a rigor, a estrutura não se volta para o sujeito e para a própria enunciação.

Na década de cinquenta, há outro texto que, além de ser fundamental no que diz respeito à teoria da enunciação, é particularmente importante para o diálogo de Benveniste com a Psicanálise. Trata-se do artigo “Observações sobre a função da linguagem na descoberta freudiana”, escrito em 1956 e publicado em Problemas de Linguística Geral I (BENVENISTE, 2005). Nesse texto, em particular, Benveniste desenvolve as noções de diálogo, intersubjetividade, sujeito e discurso; articulando suas implicações para a Psicanálise e para o próprio campo dos estudos da linguagem.

Ainda a respeito do texto supracitado, é importante frisar que se trata de uma colaboração feita a convite do próprio Lacan e publicada no primeiro volume da revista La psychanalyse, em 1956. Lacan solicita a intervenção de Benveniste devido ao seu interesse pela questão do sujeito, questão que, nos anos cinquenta, os aproximou. O objetivo do artigo de Benveniste é comentar a tese lacaniana de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Nesse artigo, dentre outras coisas, Benveniste aborda o texto freudiano de 1910 “Sobre o sentido antitético das palavras primitivas”, esboçando uma crítica sobre esse autor. Freud, nesse texto, fundamenta o funcionamento do inconsciente e do sonho, que desconhece o princípio da contradição, estabelecendo uma analogia com algumas línguas egípcias primitivas. Ele toma como ponto de partida o trabalho do linguista Carl Abel, que observa nessas línguas primitivas a existência de uma única palavra que denota sentidos opostos, e aplica esse princípio ao funcionamento do sonho e do inconsciente, com o objetivo de assim explicar como nos sonhos uma mesma representação significa duas coisas diametralmente opostas.

Benveniste ressalta que as especulações de Abel não têm sentido porque toda língua, por ser um sistema, funciona a partir desse princípio básico de contradição, que não é uma prerrogativa das línguas primitivas. A partir dessa crítica, o autor ressalta a retórica a-histórica do inconsciente lacaniano, cuja estrutura de linguagem é compreendida como um sistema que não depende de uma língua específica, inscrita em um período primitivo ou contemporâneo da história. Essa perspectiva a-histórica do inconsciente e da concepção de linguagem lacaniana converge com a crítica que Benveniste esboça a Abel em seu texto. De acordo com Benveniste, toda língua é marcada pela anomalia, pela assimetria e pela antítese, que são características inerentes ao sistema linguístico. As línguas arcaicas, diferentemente do que pensaram Abel e Freud, não são mais ou menos singulares do que são as faladas atualmente. Nas palavras de Benveniste, imaginar um estágio de linguagem, por mais original que seja, é pura quimera.

Segundo a pesquisa de Dosse (1993), Benveniste estabeleceu a história do desenvolvimento da Linguística a partir de uma tripartição de idades: a idade filosófica (que corresponde ao período da reflexão dos pensadores gregos sobre a língua); a idade histórica a partir do século XIX com a descoberta do sânscrito e a idade estruturalista do século XX, na qual, em suas palavras, a noção positiva do fato linguístico é substituída pela relação. Esse terceiro tempo dá acesso ao complexo campo da cultura que é o fenômeno simbólico que interessa tanto a Benveniste quanto a Lacan, mais propriamente ao primeiro classicismo lacaniano, expressão cunhada por Milner (1996). Na visão de Dosse (1993), o domínio do simbólico manteve, pelo período da década de cinquenta, ambos os pensadores em uma estreita proximidade e diálogo, articulando questões linguísticas e psicanalíticas a partir da doutrina do sujeito.

Benveniste com Lacan: a questão sobre o sujeito

O texto freudiano “Sobre o sentido antitético das palavras primitivas” (FREUD, 2013) é uma referência fundamental para aqueles que se interessam pela interface entre Linguística e Psicanálise. Da mesma maneira que Benveniste é um dos linguistas mais citados por Lacan, Abel é o linguista de Freud por excelência. Como testemunha a pesquisa de Arrivé (1999), Abel não é somente o linguista mais citado por Freud, após descobrir o trabalho de Abel, Freud o cita com grande frequência, por ser uma teoria que lhe permite situar as relações entre linguagem e inconsciente. Logo, há uma interessante articulação que aproxima Abel, linguista mais citado por Freud, e Benveniste, um dos linguistas mais citados por Lacan. Benveniste, até onde se sabe, só toma conhecimento de Abel a partir do artigo de Freud e sua interferência é fruto de uma solicitação por parte de Lacan.

O fato de Lacan solicitar a intervenção de Benveniste precisamente sobre o texto freudiano do significado antitético das palavras primitivas certamente não é por acaso. Isso se torna ainda mais notável se admitirmos, como o faz Arrivé (1999), que esse peculiar texto de Freud se mantém até os dias de hoje como um ponto de passagem obrigatório para quem se interessa pelas relações entre Psicanálise e Linguagem.

Benveniste e Lacan formaram uma interlocução, ao menos parcial, no decorrer da década de cinquenta, período em que Lacan esteve intimamente próximo da Linguística. A referência e deferência de Lacan a Benveniste e seu reconhecimento como grande linguista são anteriores ao convite para a publicação no primeiro número de La Psychanlyse. Na citada lição De locutionis significatione, de 23 de junho de 1954, pertencente ao Seminário 1, “Os escritos técnicos de Freud”, Lacan comenta a teoria do signo de Saussure e apoia seus comentários na autoridade linguística de Benveniste. Lacan se apoia em Saussure e em Benveniste para legitimar a pertinência de termos como significantesignificadodiscursosignificação e semântica para a situação analítica.

Logo no início de sua exposição, Lacan comenta uma entrevista que tivera com Benveniste sobre a questão da significação e se refere a ele como “a pessoa mais eminente no domínio linguístico francês”. Ao prosseguir sua exposição, o psicanalista atribui a “um homem tão eminente quanto o Sr. Benveniste” a descoberta inédita de uma dupla zona de significação na língua. Por fim, Lacan diz a seu público que tal descoberta do linguista fora confiada a ele como um encaminhamento atual de seu pensamento e é algo que é feito para nos inspirar mil reflexões.

É notável o alto grau de respeito e admiração que Lacan deposita em Benveniste nesse momento de seu ensino e de seu pensamento. Isso é reafirmado na nona nota de pé de página de “O seminário sobre ‘A carta roubada’”, de 1954, onde Lacan denomina magistral a retificação feita por Benveniste a respeito da falsa via filológica traçada por Freud sobre o sentido antitético de certas palavras, primitivas ou não. É conhecido que o diálogo e a parceria de Lacan com Benveniste e os demais linguistas se encontravam mais concentrados na década de cinquenta, momento em que o psicanalista se apoiava no estruturalismo linguístico para o seu retorno a Freud, sendo que, posteriormente, vieram rupturas, discordâncias e dissabores.

Lacan, posteriormente, explicita esse descontentamento, no ano de 1970, em Radiofonia, ao atacar Benveniste e sua contribuição para o primeiro número de La Psychanalyse. Ao comentar que a Linguística não tem sobre o inconsciente nenhuma influência, por deixar em branco o que nele surte efeito, o objeto aLacan (2003, p.408) assim se expressa: “Essa carência do linguista, pude verificá-la por uma contribuição que pedi ao maior que existiu entre os franceses, para ilustrar o lançamento de uma revista de minha criação […] – a psicanálise, nada menos.” A despeito da clara insatisfação que Lacan mais tardiamente demonstra pela contribuição de Benveniste, como atesta a expressão carência do linguista, o grande linguista da Enunciação permanece sendo reconhecido como o maior que existiu entre os franceses, demonstrando um provável misto de admiração e desprezo por parte de Lacan.

Independente de tais questões, nesse momento dos anos cinquenta, rico no diálogo lacaniano com vários linguistas, Benveniste ocupa de fato uma posição diferenciada, como atesta Arrivé:

Agora, em que sentido é tomada a oposição linguagem/língua/discurso? Exatamente no sentido de Benveniste. Porque Benveniste? A razão da escolha é evidente: com Saussure e Jakobson, é o linguista mais continuamente alegado por Lacan. (ARRIVÉ, 2001, p.114).

Dessa forma, o diálogo com a Psicanálise, como observa Dosse (1993), oferece a Benveniste um meio a se fazer valer e reconhecer suas posições a respeito da enunciação e da emergência do sujeito na linguagem, posições recusadas pelo campo linguístico dessa época. Benveniste, em seu texto, não apenas articula a psicanálise com as questões da linguagem em seu escopo teórico, mas, inclusive, estabelece sua importância no centro da conduta clínica, da relação analista-analisando, ou seja, coloca em evidência as noções de diálogo e intersubjetividade. Dessa forma, é localizável no texto de 1956 a presença de uma teoria enunciativa envolvendo linguagem e sujeitos ou envolvendo palavra e subjetividade que, no caso específico ilustrado pela relação analista-analisando, envolve sujeitos parceiros em uma situação dialógica e comunicacional1. Sobre essa situação dialógica, Benveniste, inclusive, questiona a especificidade dessa linguagem analítica como instâncias de representação do sujeito (analisando) e do/para o outro (analista):

Tudo anuncia aqui o advento de uma técnica que faz da linguagem o seu campo de ação e o instrumento privilegiado da sua eficiência. Surge então uma questão fundamental: qual é essa “linguagem” que age tanto quanto exprime? É idêntica à que se emprega fora da análise? É a mesma apenas para os dois parceiros? (BENVENISTE, 2005, p.83).

Percebe-se nesse trecho uma preocupação em articular e ao mesmo tempo distinguir a linguagem para o campo analítico e a linguagem cotidiana, a concepção de linguagem operada pela Psicanálise e a concepção operada pelas teorias linguísticas. Benveniste (2005, p.93), ao comentar a linguagem dos sonhos, coloca ainda que: “Na área em que se revela essa simbólica inconsciente, poder-se-ia dizer que ela é ao mesmo tempo infra – e supra linguística.”, articulando explicitamente o inconsciente com a linguagem e, de maneira mais específica, com a própria Linguística.

Em “Saussure após meio século”, texto de 1963, Benveniste (2005, p.44) não se furta a dizer que Todos os aspectos da linguagem que temos como dados são o resultado de operações lógicas que praticamos inconscientemente.” E prossegue sua assertiva com uma irônica frase que divide e perturba o leitor: “Tomemos consciência disso.” (BENVENISTE, 2005, p.44). O leitor é jogado em um embaraçoso paradoxo, ao ser convidado a tomar consciência de que todos os aspectos da linguagem em uso são praticados sob o pano de fundo de um saber não sabido, de um saber inconsciente. Como tomar consciência de algo que é inerentemente inconsciente? A construção textual de Benveniste opera à maneira de um chiste. Todavia, essa aproximação de Benveniste entre a linguagem e o inconsciente, como seus próprios textos e sua teoria da enunciação esclarecem, não se dá pela língua como pura estrutura, mas pela mediação do discurso e da linguagem em uso, o que conflui para a perspectiva da prática analítica.

Em outro momento do texto, é possível localizar Benveniste antecipando questões cruciais amplamente elaboradas em 1970 no seu famoso e tardio artigo “O Aparelho formal da enunciação”, sobre a distinção entre língua como sistema e língua em uso por um sujeito no contexto da enunciação:

A língua é um sistema comum a todos; o discurso é ao mesmo tempo portador de uma mensagem e instrumento de ação. Nesse sentido, as configurações da palavra são cada vez únicas, embora se realizem no interior – e por intermédio – da linguagem. Há, pois, antinomia no sujeito entre o discurso e a língua. (BENVENISTE, 2005, p.84).

Freud, Benveniste e o significado antitético das palavras primitivas

 Benveniste foi convidado por Lacan para dar sua contribuição ao primeiro número da revista La Psychanalyse, em 1956, por demonstrar adesão às teses discutidas em “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, de 1953, um dos textos lacanianos mais fortemente ancorados em pressupostos linguísticos. A contribuição de Benveniste para a revista em questão é o texto “Observações sobre a função da linguagem na descoberta freudiana”, um comentário crítico sobre o texto freudiano de 1910 “Sobre o sentido antitético das palavras primitivas” e igualmente um tributo à talking cure analítica. O linguista trabalha a dimensão subjetiva da linguagem cuja análise convida um sujeito a experienciar e discute a concepção de cura calcada na possibilidade de se reescrever e de se reposicionar frente à sua própria história, partindo de um processo narrativo biográfico. Benveniste ainda define o que Freud denominou de realidade psíquica, ao enunciar que a dimensão operada pela Psicanálise não trata da dimensão da realidade empírica e sim da dimensão do discurso, sendo esse que vem conferir autenticidade à experiência:

De fato, se ele precisa de que o paciente lhe conte tudo – mesmo que se expresse ao acaso e sem propósito definido – não é para reconhecer um fato empírico que não haja sido registrado em parte nenhuma a não ser na memória do paciente: é porque os acontecimentos empíricos não têm realidade para o analista a não ser no – e pelo – ‘discurso’, que lhes confere a autenticidade da experiência, sem consideração da sua realidade histórica, e mesmo (é preciso dizer: sobretudo) que o discurso evite, transponha ou invente a biografia que o sujeito se atribuiu. (BENVENISTE, 2005, p.83).

A dimensão ética da linguagem em uso é constantemente ressaltada por Benveniste em seus textos, ao colocar em cena a responsabilização do sujeito em sua enunciação. Benveniste ainda demonstra interesse pelas análises freudianas e suas íntimas relações com o universo da palavra e da subjetividade. Ressalta que o analista deve estar atento não apenas ao discurso, mas às rupturas do discurso, demonstrando sua adesão a uma concepção de discurso não ancorada em sua compreensão fechada. Ainda segundo o linguista, Freud lançou luzes decisivas sobre a atividade verbal, tal como se revela na associação livre, sendo que toda a força da linguagem é intimamente atrelada à hipótese do inconsciente. O processo analítico é um fenômeno de discurso marcado por uma tomada particular da palavra, a palavra que marca cada sujeito de maneira estritamente particular. Isso acentua um ponto de contato entre a teoria da enunciação de Benveniste e as elaborações lacanianas vigentes na época. Tal encontro conceitual é justificado por Dosse:

Esse encontro entre as teses lacanianas e Benveniste não é fortuito: é uma decorrência, para além do interesse mútuo de estabelecer a cientificidade dos respectivos discursos, da vontade comum de subtrair o continente de saber de cada um da sua dependência da história, quer seja o filogeneticismo freudiano para um ou a filologia histórica para outro. (DOSSE, 1993, p.63).

Benveniste propõe nesse texto uma reflexão sobre a relação entre Freud e o linguista Carl Abel. Ele, dessa forma, mostra-se interessado pelas reflexões de Abel, mas um interesse mediado por Freud: trata-se de problematizar a influência que Abel tivera sobre Freud. Em uma nota de rodapé, adicionada em 1911 à terceira edição de A interpretação de sonhos, Freud se vale das teses de Abel para justificar suas hipóteses sobre a dinâmica do inconsciente, estabelecendo um paralelismo entre as teses de Abel sobre a natureza antitética das palavras em algumas línguas primitivas com a maneira pela qual as representações opostas convivem harmonicamente no inconsciente. Essas representações opostas são apresentadas por um único elemento, na medida em que o inconsciente desconhece o não, qualquer princípio de contradição e os índices de positividade e negatividade. Em suas palavras, os sonhos se sentem livres para representar qualquer elemento por seu oposto, tornando impossível decidir à primeira vista se qualquer elemento que admita um contrário está presente no trabalho do sonho como positivo ou negativo.

Pode-se lançar mão de um exemplo freudiano muito frequentemente citado, um sonho onde a cor branca representa ao mesmo tempo a inocência e a impureza sexual. Freud conclui que, sobre esse aspecto, o sonho se comporta da mesma forma que essas línguas primitivas pesquisadas por Abel.

Percebe-se que o interesse pela questão da linguagem, especificamente pelo linguista Abel, é algo que o próprio Freud fundamenta no início de suas teorizações e remete ao momento da própria criação da Psicanálise. Tendo consciência disso, Benveniste não se furta de trazer A interpretação de sonhos em seu artigo e fazer referência à lógica particular dos sonhos para discutir as teses de Freud. Segundo Milner (2008), parecia a Freud que Abel propunha dois paralelos exatos dentro de um domínio estritamente lexical: o que é verdadeiro no sonho sobre a relação entre material representante (a cor branca) e a significação representada (inocência ou impureza) é igualmente verdadeiro na língua sobre a relação entre material fônico e coisa significada.

Assim, partindo de sua descoberta no egípcio antigo, um mesmo material fônico pode significar realidades opostas. Freud exemplifica com determinadas palavras que podem significar ao mesmo tempo forte ou fracocomandar ou obedecer; e compostos como velho – jovem ou longe – perto. Conclui que esses compostos exprimem, no uso da língua, a significação de uma de suas partes contraditórias, uma parte que teria tido a mesma significação só por si. Abel justifica esse curioso fenômeno linguístico de uma forma que, a despeito de vários aspectos diferentes em seu raciocínio sobre a língua, possibilita considerá-lo como um saussureano avant la lettre. Ele não deixa de observar, e Freud segue sua trilha, que nossos conceitos devem sua existência a comparações. Em suas palavras, tudo no mundo é relativo e tem uma existência independente apenas na medida em que se diferencia quanto a suas relações com as outras coisas.

Dessa forma, a palavra que, a princípio, parece significar simultaneamente forte e fraco, designa na realidade a relação e a diferença entre ambos. Eis, de certa maneira, um paralelismo com o clássico princípio estrutural proposto por Saussure: a língua é um sistema de diferenças em que não há positividade ou negatividade em si. Prosseguindo com o raciocínio de Abel, essa forte ambiguidade linguística foi solucionada pelos falantes via uso de gestos que indicariam o polo significativo da palavra a ser utilizada em cada contexto de comunicação.

Milner (2008) opina que, nas pesquisas de Abel sobre o egípcio antigo, o dado importante é da ordem da indistinção e não da oposição, pois a indistinção descarta a existência do não, assim como ocorre com a lógica dos sonhos. Na lógica onírica, como já se sabe, um elemento é representado pelo seu oposto de modo que não há como decidir, a princípio, se esse elemento que admite o contrário está presente no sonho como positivo ou negativo.

A lógica da oposição, por sua vez, força Freud a limitar sua tese sobre a ausência de contradição nos sonhos e já anuncia a noção de denegação, desenvolvida no importante artigo Die Verneinung, de 1925; publicado com o título de “A negativa” (FREUD, 2007). Nesse artigo, Freud observa que o uso do não no discurso dos analisados é um índice do recalque, ou seja, o inconsciente só se faz reconhecer no discurso sobre a marca de uma negação. Apropriando-se do exemplo citado pelo próprio Freud, quando um paciente ao relatar um sonho diz sobre determinado personagem: não é a minha mãe, o que se tem é um não seguido por uma afirmação é a minha mãe. A lógica da oposição vale-se do mesmo princípio da denegação: utiliza-se do não para designar algo positivamente. O que Freud encontra em Abel, por sua vez, são situações marcadas por uma ausência do paradigma linguístico da oposição entre os nomes e da própria negação. Abel, em resumo, não coloca em causa a negação. Sobre essa questão, Milner (2008) constata um paradoxo de Freud, que faz referência a Abel precisamente no momento em que a tese da inexistência do “não” no sonho é afirmada por ela mesma. O que Abel ilustra, por sua vez, é a impossibilidade de se demarcar, à primeira vista, o significado de um elemento determinado.

Ao se utilizar do apoio das teorias linguísticas de Abel, Freud cria um impasse. Se por um lado a inexistência do não e do princípio da contradição no sonho é afirmada e endossada a partir de Freud, ela é igualmente limitada de diversas maneiras, pois o sonho opera condensações e deslocamentos de representações que supõem os princípios da contradição e da negação. Se Freud afirma que um elemento do sonho pode ser representado pelo seu oposto, como afirmar então que ele desconhece os princípios da contradição e da negação? Da mesma forma que se o mecanismo onírico da condensação supõe duas representações opostas representadas no mesmo elemento, como novamente excluir os princípios da contradição e da negação? O argumento procurado em Abel é ao mesmo tempo relevante e frágil e a contradição aparece no próprio Freud.

A respeito desse impasse, Milner (2008) propõe uma leitura para solucioná-lo, ao postular que a Interpretação de Sonhos funciona como se tudo no texto operasse como uma Verschiebung, um deslocamento no sentido cunhado por Freud, em que o fundamental não é o que é destacado como tese direta, mas sua consequência: a indecidibilidade2. O prosseguimento das elaborações de Milner permite uma íntima articulação entre A interpretação de sonhos, o paradigma estruturalista e o último ensino de Lacan: se detendo ao essencial, a tese de Freud nos diz que o sonho é analisável em termos cada vez mais minimalistas. Essa hipótese minimalista é o que Milner chama de os Uns do sonho: o desejo, o pensamento e os elementos mínimos dos sonhos. Da mesma forma que a língua e a realidade são também analisáveis nos termos dos Uns: a palavra, a coisa, o ato.

O inconsciente se faz assim um sistema no qual se supõe o mínimo possível de propriedades. A Linguística Estrutural, por ser um paradigma de redução dos elementos a um critério de pura diferença em um sistema, sustenta-se em determinadas teses minimalistas. As propriedades mínimas do sistema linguístico são passíveis de serem decompostas em elementos igualmente mínimos, sendo que o elemento do sistema tem suas propriedades determinadas pelo próprio sistema. Por outro lado, encontramos a noção de registro do Um nos trabalhos de Lacan, a partir do Seminário 19 … ou pior. O Um é solidário com as noções de gozo e de real da língua, por implicar uma vertente da interpretação não mais ancorada no discurso do Outro. Partindo dessas pontuais considerações, é possível localizar, então, na Interpretação de Sonhos as duas faces dialéticas da linguagem que são objeto da Psicanálise: a linguagem simbólica que oferece base para a leitura estruturalista de Lacan, amplamente abordada no trabalho de interpretação e de produção de sentido nos sonhos; e o real irrepresentável da língua, correlato ao umbigo do sonho, tal como expressa Freud:

Mesmo no sonho mais minuciosamente interpretado, é frequente haver um trecho que tem de ser deixado na obscuridade; é que, durante o trabalho de interpretação, apercebemo-nos de que há nesse ponto um emaranhado de pensamentos oníricos que não se deixa desenredar e que, além disso, nada acrescenta a nosso conhecimento do conteúdo do sonho. Esse é o umbigo do sonho, o ponto onde ele mergulha no desconhecido. (FREUD, 1976, p.482).

Os Uns podem também se confundir com o registro do simbólico, se partimos das leis da condensação e do deslocamento que governam a dinâmica onírica. O que no sonho pode ser representado por um elemento, quantitativamente na realidade pode representar uma infinidade de elementos, o que é próprio da condensação. Do ponto de vista qualitativo, uma representação que seja fundamental no sonho pode ser sem importância na realidade ou inversamente, o que é próprio do deslocamento. Por fim, algo que possa ser confundido no sonho pode ser distinto ou mesmo opositivo na realidade, que é próprio do significado antitético como cunhado por Abel.

Segundo um comentário de Milner (2008) que, na verdade segue a mesma via associativa proposta por Freud, a não coincidência quantitativa e qualitativa entre os diversos Uns pode ser concebida como o ponto crucial da análise, em que um desejo único pode ser enunciado de diversas maneiras, ser expresso em múltiplos e diversos atos. Ao se deter na expressão não coincidência, plenamente desenvolvida pelos trabalhos de Authier-Revuz (2001), entende-se melhor por que razão o sonho é considerado um discurso heterogêneo. O sonho é um Outro, uma alteridade para o próprio sujeito sonhador, é o lugar privilegiado da encenação do inconsciente, que Freud denominou, a partir de Fechner, de uma outra cena (ein anderer Schauplatz). O registro do sonho e o registro da realidade formam uma cena discursiva heterogênea marcada pela não coincidência de suas respectivas enunciações. O trabalho do sonho projeta, assim, em um plano único de representação, os vários Uns e suas correspondências.

O inconsciente.

Voltando à pesquisa de Abel sobre o sentido antitético das palavras primitivas e sua leitura empreendida por Freud, observa-se que o psicanalista encontrou elementos no artigo de Abel para legitimar suas teorias sobre a linguagem no inconsciente, mas de maneira a especificar a própria não coincidência dos Uns e sua indecidibilidade. A não coincidência e a indecidibilidade podem ser ilustradas em Abel a partir de sua hipótese sobre o uso de sinais na linguagem falada no Egito antigo. Em sua opinião, era através do gesto que a significação desejada da palavra antitética poderia ser explicitada. A interpretação dos sonhos, ao contrário, não se vale de um elemento exterior à linguagem falada para escandir as significações e os sentidos das representações. Os Uns do sonho também se confundem em sua extensa rede associativa de condensações e deslocamentos, mas é no trabalho da própria linguagem, a partir da interpretação, que uma significação pode ser escandida, traçando o caminho da indecidibilidade rumo a não coincidência dos Uns. A interpretação, assim como o gesto na linguagem primitiva, introduz uma distinção e não confunde a indecidibilidade; mas através de um elemento da própria linguagem falada e não exterior a ela. São duas modalidades distintas de explicitar a não coincidência em Abel e em Freud.

Benveniste contra Freud: a questão da estrutura

É proposto agora se valer de um termo de Milner (1987) e se interrogar pelo desejo do linguista. Para Milner (2008), há algo em Abel que opera para Benveniste como da ordem de um choque. A partir da leitura de seu texto, é notável em Benveniste um grande incômodo com relação às elaborações de Abel e um esforço para desqualificá-las: ele não se furta em dizer que nenhum linguista qualificado, seja na época em que Abel escrevia ou posteriormente, conservou este texto sobre as palavras primitivas, seja em seus métodos ou em suas conclusões. Não deixa igualmente de afirmar que os dados de Abel são falsos e que há razões, ao se reportar à história das línguas, para tirar todo o crédito às especulações etimológicas de Abel que seduziram Freud.

Os ataques a Abel ganham contornos muito diretivos e pessoais se lembrarmos da passagem em que Benveniste, de uma maneira bastante irônica, expressa que se há insensibilidade à contradição ela não está na língua, mas na figura do próprio pesquisador. Há um forte aspecto das postulações de Abel que provoca séria resistência em Benveniste, que é sua hipótese sobre o uso de gestos para explicitar o polo opositivo da palavra antitética.

As construções teóricas de Benveniste podem ser aproximadas do axioma lacaniano que enuncia que não há metalinguagem, o que quer dizer que, para ele, a Linguística não tem nada a saber de uma instância externa à língua. Para Abel, o recurso ao gesto consiste em introduzir diferenciações no signo linguístico a partir de um elemento exterior à língua. Para Benveniste, sendo fiel à sua herança saussureana, a língua executa por si própria todas as diferenças que ela tem a conhecer. Esse princípio é tão essencial que Saussure chega a afirmar que a língua pode se contentar com a oposição de algo com nada: há uma diferença pura inscrita no próprio sistema linguístico.

Se compreendermos que a língua é um sistema minimalista marcado pela relação de oposição entre seus termos, torna mais clara a compreensão de que as línguas primitivas não têm uma lógica particular que as diferenciem das línguas faladas atualmente. Da mesma maneira que a contradição e o ilogismo estão inscritos na própria natureza do signo linguístico e não podem ser particularizados para uma língua específica inscrita em determinado tempo histórico. É possível ler o axioma lacaniano o inconsciente é estruturado como uma linguagem à luz das críticas de Benveniste em relação a Abel. Conceber o inconsciente estruturado como uma linguagem tem uma importante consequência: o algoritmo se refere a uma linguagem qualquer, sem qualquer especificidade. Em um momento mais tardio de seu ensino, no decorrer de uma lição do Seminário 19 …ou pior, esse ponto de vista estruturalista sobre a linguagem aparece de forma explícita no discurso de Lacan em uma passagem que, embora longa, merece ser transcrita:

[…] se uma coisa digna do título de ´linguística como ciência´ se sustentou, algo que parece ter a língua ou a fala como objeto, foi sob a condição de os linguistas jurarem uns aos outros nunca, nunca mais – porque não se fizera senão isso durante séculos- nunca mais, nem mesmo de longe, aludir à origem da linguagem. Essa foi uma das palavras de ordem que dei a esta forma de introdução que se articulou em minha formulação ´o inconsciente é estruturado como uma linguagem´. […] Não se trata, de modo algum, de especular sobre alguma origem da linguagem. (LACAN, 2012, p.67).

A solidariedade de Benveniste com o Estruturalismo coloca-o em uma relação de proximidade com Lacan e Saussure e em uma relação de distanciamento com Freud. Dentre esses três pensadores, Freud foi o único que não renunciou à questão das origens e submeteu o inconsciente, ao menos em um período de sua teoria, à conformação de operar dentro da particularidade de uma “língua primitiva” e não no universal da linguagem humana. Benveniste é claro e direto sobre essa questão:

Essas confusões parecem nascer, em Freud, do seu constante recurso às “origens”: origens da arte, da religião, da sociedade, da linguagem… Freud transpõe constantemente o que lhe parece “primitivo” no homem em um primitivo de origem, pois é exatamente na história deste mundo que ele projeta aquilo a que se poderia chamar uma cronologia do psiquismo humano. (BENVENISTE, 2005, p.90).

Freud, um verdadeiro apaixonado pela questão das origens, como denuncia o prefixo alemão Ur, frequentemente empregado em seus conceitos, (Ursprache, Urvater, Urverdrängung, Urzene3), desconhecia essa característica universal e estrutural do signo linguístico, apesar de, no texto sobre as palavras primitivas, demonstrar um grande interesse por essas propriedades da linguagem. As críticas esboçadas por Benveniste endossam a tese lacaniana do inconsciente estruturado como uma linguagem, pois se trata para ambos da linguagem como um sistema.

É possível encontrar em “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” algumas passagens em que Lacan também se posiciona criticamente em relação à ideia de uma linguagem primitiva e a uma perspectiva historicizante dos fenômenos linguístico e psíquico. Nesse texto, Lacan fala de um inconsciente histórico, mas em um sentido bastante diferente daquele tratado por Freud em sua solidariedade conceitual com Abel. Lacan aproxima a Psicanálise e a História de uma maneira que pode ser considerada inovadora, por postular que ambas sejam ciências do particular, que lidam com fatos puramente acidentais e factícios, cujo valor último se reduz ao aspecto bruto do trauma.

É uma conceitualização do fenômeno histórico bastante diferente da concepção cronológica que geralmente se aprende a construir a seu respeito. Um certo caráter atemporal da história, próprio do inconsciente, é igualmente formulado por Lacan (1998, p.262): “Os acontecimentos se engendram numa historicização primária, ou seja, a história já se faz no palco em que será encenada depois de escrita, no foro íntimo e no foro externo.” Lacan é ainda bastante diretivo ao dizer, no encadeamento de sua exposição, que o que na Psicanálise se ensina o sujeito a reconhecer como seu inconsciente é sua história.

O analista ajuda o sujeito a perfazer a historicização atual dos fatos que já determinaram em sua existência um certo número de reviravoltas históricas. Se esses fatos têm o sentido de fatos históricos, são como reconhecidos ou censurados em uma certa ordem discursiva já inscrita no inconsciente. Lacan (1998, p.294) reafirma, assim, a estrutura de linguagem no simbolismo inconsciente, mas esse simbolismo “[…] tem o caráter universal de uma língua que se fizesse ouvir em todas as outras línguas, mas que, ao mesmo tempo, por ser a linguagem que capta o desejo no ponto exato em que ele se humaniza, […] é absolutamente peculiar ao sujeito.” Logo a seguir, encontramos em Lacan (1998, p.295) uma crítica velada a Freud, o que difere da crítica severa e diretiva que fez a Benveniste: “Linguagem primeira, dizemos também, com o que não queremos dizer língua primitiva, uma vez que Freud […] decifrou-a por inteiro nos sonhos de nossos contemporâneos.” Não é difícil perceber o quanto Benveniste se ancorou nessas colocações lacanianas ao criticar o tema das origens em Freud.

Se por um lado é evidente, nesse período, o interesse de Lacan pela linguística pós- saussureana e estruturalista, os métodos próprios dessa linguística não são utilizados por ele. Para Milner (2008), podemos concluir que Lacan se interessa pelo fato geral de que a língua tem propriedades estabelecidas pela linguística estruturalista, mas não se interessa pelos seus métodos. Dessa forma, Milner (2008) ainda propõe um modo de interpretar o axioma “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” que parece relevante: admitindo-se que uma linguagem tem propriedades de estrutura (conforme demonstra a Linguística), o inconsciente tem as mesmas propriedades. Em contrapartida, para que isso seja verdadeiro, não são relevantes os processos pelos quais essas propriedades são estabelecidas. A linguística que interessa a Lacan, e que é a mesma recuperada por Benveniste em seu artigo, é aquela que conhece a linguagem concentrando-se em reter dela somente as propriedades mínimas de um sistema qualquer. Se a linguagem é um sistema, Benveniste e Lacan, ambos seguindo a trilha de Saussure, demonstram a incorreção do pensamento freudiano ao articular os processos inconscientes com uma linguagem especificamente primitiva.Para concluir, é importante chamar a atenção para o fato de que a decisão de Lacan de convocar um linguista para comentar o texto freudiano “Sobre o sentido antitético das palavras primitivas” não é casual, já que trata-se de um texto estranhamente silenciado na obra do próprio Lacan. É um desafio localizar em sua obra, ao menos em seus textos e seminários até o momento estabelecidos, qualquer referência a esse pequeno texto freudiano, que tem maior reconhecimento no meio linguístico que no psicanalítico. Coube a Benveniste comentar esse opaco texto e nesse comentário encontramos, nas palavras de Milner (2008), um momento benvenisteano por excelência no que diz respeito aos sentidos opostos.

Benveniste, Abel e o significado antitético das palavras primitivas

Conforme já exposto, o texto freudiano sobre o significado antitético das palavras primitivas é uma referência fundamental para aqueles que se interessam pela interface entre Linguística e Psicanálise. Da mesma maneira que Benveniste é um dos linguistas mais citados por Lacan, Abel é o linguista de Freud por excelência. Como testemunha a pesquisa de Arrivé (1999), Abel não é somente o linguista mais citado por Freud: após descobrir o trabalho de Abel, Freud o cita com grande frequência, por ser uma teoria que lhe permite situar as relações entre linguagem e inconsciente. Logo, há uma interessante articulação que aproxima Abel, linguista mais citado por Freud, e Benveniste, um dos linguistas mais citados por Lacan. Benveniste, até onde se sabe, só toma conhecimento de Abel a partir do artigo de Freud e sua interferência é fruto de uma solicitação por parte de Lacan.

O fato de Lacan solicitar a intervenção de Benveniste, precisamente sobre o texto freudiano do significado antitético das palavras primitivas certamente não é por acaso. Isso se torna ainda mais notável se admitirmos, como o faz Arrivé (1999), que esse peculiar texto de Freud se mantém até os dias de hoje como um ponto de passagem obrigatório para quem se interessa pelas relações entre Psicanálise e linguagem.

Benveniste e Lacan, como já pontuei nesta tese e o próprio texto testemunha, formaram uma interlocução, ao menos parcial, no decorrer da década de cinquenta, período em que Lacan esteve intimamente próximo da Linguística. A referência e deferência de Lacan a Benveniste e seu reconhecimento como grande linguista são anteriores ao convite para a publicação no primeiro número de La Psychanlyse. Na citada lição de locutionis significatione, de 23 de junho de 1954, pertencente ao Seminário 1 Os escritos técnicos de Freud, Lacan comenta a teoria do signo de Saussure e apoia seus comentários na autoridade linguística de Benveniste. Lacan se apoia em Saussure e Benveniste para legitimar a pertinência de termos como significante, significado, discurso, significação e semântica para a situação analítica.

Logo no início de sua exposição, Lacan comenta uma entrevista que tivera com Benveniste sobre a questão da significação e se refere ao mesmo como “a pessoa mais eminente no domínio linguístico francês”. Ao prosseguir sua exposição, o psicanalista atribui a “um homem tão eminente quanto o Sr. Benveniste” a descoberta inédita de uma dupla zona de significação na língua. Por fim, Lacan diz a seu público que tal descoberta do linguista fora confiada a ele como um encaminhamento atual de seu pensamento e é algo que é feito para nos inspirar mil reflexões.

É notável o alto grau de respeito e admiração que Lacan deposita em Benveniste nesse momento de seu ensino e de seu pensamento. Isso é reafirmado na nona nota de pé de página de O seminário sobre “A carta roubada”, de 1954, onde Lacan denomina de “magistral” a retificação feita por Benveniste a respeito da falsa via filológica traçada por Freud sobre o sentido antitético de certas palavras, primitivas ou não. É conhecido que o diálogo e a parceria de Lacan com Benveniste e os demais linguistas se encontrava mais concentrado na década de cinquenta, momento em que o psicanalista se apoiava no estruturalismo linguístico para o seu retorno a Freud, sendo que, posteriormente, vieram rupturas, discordâncias e dissabores.

Lacan, posteriormente, explicita esse descontentamento, no ano de 1970, em Radiofonia, ao atacar Benveniste e sua contribuição para o primeiro número de La Psychanalyse. Ao comentar que a Linguística não tem sobre o inconsciente nenhuma influência, por deixar em branco o que nele surte efeito, o objeto a, Lacan (2003, p. 408) assim se expressa: “Essa carência do linguista, pude verificá-la por uma contribuição que pedi ao maior que existiu entre os franceses, para ilustrar o lançamento de uma revista de minha criação (…) – a psicanálise, nada menos.” A despeito da clara insatisfação que Lacan mais tardiamente demonstra pela contribuição de Benveniste, como atesta a expressão carência do linguista, o grande Linguista da Enunciação permanece sendo reconhecido como o maior que existiu entre os franceses, demonstrando um provável misto de admiração e desprezo por parte de Lacan.

Independente de tais questões, nesse momento dos anos cinquenta, rico no diálogo lacaniano com vários linguistas, Benveniste ocupa de fato uma posição diferenciada, como atesta Arrivé:

Agora, em que sentido é tomada a oposição linguagem/língua/discurso? Exatamente no sentido de Benveniste. Por que Benveniste? A razão da escolha é evidente: com Saussure e Jakobson, é o linguista mais continuamente alegado por Lacan. (Arrivé, 2001, p. 114).

Dessa forma, o diálogo com a Psicanálise, como observa Dosse (1993), oferece a Benveniste um meio a se fazer valer e reconhecer suas posições a respeito da enunciação e da emergência do sujeito na linguagem, posições recusadas pelo campo linguístico dessa época. Benveniste, em seu texto, não apenas articula a psicanálise com as questões da linguagem em seu escopo teórico, mas, inclusive, estabelece sua importância no centro da conduta clínica, da relação analista – analisando, ou seja, coloca em evidência as noções de diálogo e intersubjetividade. Dessa forma, é localizável no texto de 1956 a presença de uma teoria enunciativa envolvendo linguagem e sujeitos ou envolvendo palavra e subjetividade que, no caso específico ilustrado pela relação analista-analisando, envolve sujeitos parceiros em uma situação dialógica e comunicacional. Sobre essa situação dialógica, Benveniste, inclusive, questiona a especificidade dessa linguagem analítica como instâncias de representação do sujeito (analisando) e do/para o outro (analista):

Tudo anuncia aqui o advento de uma técnica que faz da linguagem o seu campo de ação e o instrumento privilegiado da sua eficiência. Surge então uma questão fundamental: qual é essa “linguagem” que age tanto quanto exprime? É idêntica à que se emprega fora da análise? É a mesma apenas para os dois parceiros? (Benveniste, 2005, p. 83).

Percebe-se nesse trecho uma preocupação em articular e ao mesmo tempo distinguir a linguagem para o campo analítico e a linguagem cotidiana, a concepção de linguagem operada pela Psicanálise e a concepção operada pelas teorias linguísticas. Benveniste (2005, p. 93), ao comentar a linguagem dos sonhos, coloca ainda que “Na área em que se revela essa simbólica inconsciente, poder-se-ia dizer que ela é ao mesmo tempo infra – e supra linguística.”, articulando explicitamente o inconsciente com a linguagem e, de maneira mais específica, com a própria Linguística.

Em Saussure após meio século (1963), Benveniste (2005, p.44) não se furta a dizer que “Todos os aspectos da linguagem que temos como dados são o resultado de operações lógicas que praticamos inconscientemente.” E prossegue sua assertiva com uma irônica frase que divide e perturba o leitor: “Tomemos consciência disso”. O leitor é jogado em um embaraçoso paradoxo, ao ser convidado a tomar consciência de que todos os aspectos da linguagem em uso são praticados sob o pano de fundo de um saber não sabido, de um saber inconsciente. Como tomar consciência de algo que é inerentemente inconsciente? A construção textual de Benveniste opera à maneira de um chiste. Todavia, essa aproximação de Benveniste entre a linguagem e o inconsciente, como seus próprios textos e sua teoria da enunciação esclarecem, não se dá pela língua como pura estrutura, mas pela mediação do discurso e da linguagem em uso, o que conflui para a perspectiva da prática analítica.

Em outro momento do texto, é possível localizar Benveniste antecipando questões cruciais amplamente elaboradas em 1970 no seu famoso e tardio artigo O Aparelho formal da enunciação, sobre a distinção entre língua como sistema e língua em uso por um sujeito no contexto da enunciação:

A língua é um sistema comum a todos; o discurso é ao mesmo tempo portador de uma mensagem e instrumento de ação. Nesse sentido, as configurações da palavra são cada vez únicas, embora se realizem no interior – e por intermédio – da linguagem. Há, pois, antinomia no sujeito entre o discurso e a língua. (Benveniste, 2005, p. 84).

Benveniste foi convidado por Lacan para dar sua contribuição ao primeiro número da revista La Psychanalyse, em 1956, por demonstrar adesão às teses discutidas em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, de 1953, um dos textos lacanianos mais fortemente ancorados em pressupostos linguísticos. A contribuição de Benveniste para a revista em questão é o texto Observações sobre a função da linguagem na descoberta freudiana, um comentário crítico sobre o texto freudiano de 1910 A significação antitética das palavras primitivas e igualmente um tributo à talking cure analítica. O linguista ali trabalha a dimensão subjetiva da linguagem cuja análise convida um sujeito a experienciar e discute a concepção de cura calcada na possibilidade de se reescrever e de se reposicionar frente à sua própria história, partindo de um processo narrativo biográfico. Benveniste ainda define o que Freud denominou de realidade psíquica, ao enunciar que a dimensão operada pela Psicanálise não trata da dimensão da realidade empírica e sim da dimensão do discurso, sendo esse que vem conferir autenticidade à experiência:

De fato, se ele precisa de que o paciente lhe conte tudo – mesmo que se expresse ao acaso e sem propósito definido – não é para reconhecer um fato empírico que não haja sido registrado em parte nenhuma a não ser na memória do paciente: é porque os acontecimentos empíricos não têm realidade para o analista a não ser no – e pelo – ‘discurso’, que lhes confere a autenticidade da experiência, sem consideração da sua realidade histórica, e mesmo (é preciso dizer: sobretudo) que o discurso evite, transponha ou invente a biografia que o sujeito se atribuiu. (Benveniste, 2005, p. 83).

A dimensão ética da linguagem em uso é constantemente ressaltada por Benveniste em seus textos, ao colocar em cena a já mencionada responsabilização do sujeito em sua enunciação. Benveniste ainda demonstra interesse pelas análises freudianas e suas íntimas relações com o universo da palavra e da subjetividade. Ressalta que o analista deve estar atento não apenas ao discurso, mas às rupturas do discurso, demonstrando sua adesão a uma concepção de discurso não ancorada em sua compreensão fechada. Ainda segundo o linguista, Freud lançou luzes decisivas sobre a atividade verbal, tal como se revela na associação livre, sendo que toda a força da linguagem é intimamente atrelada à hipótese do inconsciente. O processo analítico é um fenômeno de discurso marcado por uma tomada particular da palavra, a palavra que marca cada sujeito de maneira estritamente particular. Isso acentua um ponto de contato entre a teoria da enunciação de Benveniste e as elaborações lacanianas vigentes na época. Tal encontro conceitual é justificado por Dosse:

Esse encontro entre as teses lacanianas e Benveniste não é fortuito: é uma decorrência, para além do interesse mútuo de estabelecer a cientificidade dos respectivos discursos, da vontade comum de subtrair o continente de saber de cada um da sua dependência da história, quer seja o filogeneticismo freudiano para um ou a filologia histórica para outro. (Dosse, 1993, p. 63).

Benveniste propõe nesse texto uma reflexão sobre a relação entre Freud e o linguista Carl Abel. Ele, dessa forma, mostra-se interessado pelas reflexões de Abel, mas um interesse mediado por Freud: trata-se de problematizar a influência que Abel tivera sobre Freud. Em uma nota de rodapé, adicionada em 1911 à terceira edição de A interpretação de sonhos, Freud se vale das teses de Abel para justificar suas hipóteses sobre a dinâmica do inconsciente, estabelecendo um paralelismo entre as teses de Abel sobre a natureza antitética das palavras em algumas línguas primitivas com a maneira pela qual as representações opostas convivem harmonicamente no inconsciente. Essas representações opostas são apresentadas por um único elemento, na medida em que o inconsciente desconhece o “não”, qualquer princípio de contradição e os índices de positividade e negatividade. Em suas palavras, os sonhos se sentem livres para representar qualquer elemento por seu oposto, tornando impossível decidir à primeira vista se qualquer elemento que admita um contrário está presente no trabalho do sonho como positivo ou negativo.

Podemos lançar mão de um exemplo freudiano muito frequentemente citado, um sonho onde a cor branca representa ao mesmo tempo a inocência e a impureza sexual. Freud conclui que, sobre esse aspecto, o sonho se comporta da mesma forma que essas línguas primitivas pesquisadas por Abel.

Percebo que o interesse pela questão da linguagem, especificamente pelo linguista Abel, é algo que o próprio Freud fundamenta no início de suas teorizações e remete ao momento da própria criação da Psicanálise. Tendo consciência disso, Benveniste não se furta de trazer A interpretação de sonhos em seu artigo e fazer referência à lógica particular dos sonhos para discutir as teses de Freud. Segundo Milner (2008), parecia a Freud que Abel propunha dois paralelos exatos dentro de um domínio estritamente lexical: o que é verdadeiro no sonho sobre a relação entre material representante (a cor branca) e a significação representada (inocência ou impureza) é igualmente verdadeiro na língua sobre a relação entre material fônico e coisa significada.

Assim, partindo de sua descoberta no egípcio antigo, um mesmo material fônico pode significar realidades opostas. Freud exemplifica com determinadas palavras que podem significar ao mesmo tempo “forte” ou “fraco”, “comandar” ou “obedecer”; e compostos como “velho – jovem” ou “longe – perto”. Conclui que esses compostos exprimem, no uso da língua, a significação de uma de suas partes contraditórias, uma parte que teria tido a mesma significação só por si. Abel justifica esse curioso fenômeno linguístico de uma forma que, a despeito de vários aspectos diferentes em seu raciocínio sobre a língua, possibilita-me considerá-lo como um saussureano avant la lettre. Ele não deixa de observar, e Freud segue sua trilha, que nossos conceitos devem sua existência a comparações. Em suas palavras, tudo no mundo é relativo e tem uma existência independente apenas na medida em que se diferencia quanto a suas relações com as outras coisas.

Dessa forma, a palavra que, a princípio, parece significar simultaneamente “forte” e “fraco”, designa na realidade a relação e a diferença entre ambos. Eis, de certa maneira, um paralelismo com o clássico princípio estrutural proposto por Saussure: a língua é um sistema de diferenças em que não há positividade ou negatividade em si. Prosseguindo com o raciocínio de Abel, essa forte ambiguidade linguística foi solucionada pelos falantes via uso de gestos que indicariam o polo significativo da palavra a ser utilizada em cada contexto de comunicação.

Milner (2008) opina que, nas pesquisas de Abel sobre o egípcio antigo, o dado importante é da ordem da indistinção e não da oposição, pois a indistinção descarta a existência do “não”, assim como ocorre com a lógica dos sonhos. Na lógica onírica, como já se sabe, um elemento é representado pelo seu oposto de modo que não há como decidir, a princípio, se esse elemento que admita o contrário está presente no sonho como positivo ou negativo.

A lógica da oposição, por sua vez, força Freud a limitar sua tese sobre a ausência de contradição nos sonhos e já anuncia a noção de denegação, desenvolvida no importante artigo Die Verneinung, de 1925; publicado com o título de A negativa. Nesse artigo, Freud observa que o uso do “não” no discurso dos analisandos é um índice do recalque, ou seja, o inconsciente só se faz reconhecer no discurso sobre a marca de uma negação. Apropriando-se do exemplo citado pelo próprio Freud, quando um paciente ao relatar um sonho diz sobre determinado personagem: “não é a minha mãe”, o que se tem é um “não” seguido por uma afirmação “é a minha mãe”. A lógica da oposição vale-se do mesmo princípio da denegação: utiliza-se do “não” para designar algo positivamente. O que Freud encontra em Abel, por sua vez, são situações marcadas por uma ausência do paradigma linguístico da oposição entre os nomes e da própria negação. Abel, em resumo, não coloca em causa a negação. Sobre essa questão, Milner (2002) constata um paradoxo de Freud, que faz referência a Abel precisamente no momento em que a tese da inexistência do “não” no sonho é afirmada por ela mesma. O que Abel ilustra, por sua vez, é a impossibilidade de se demarcar, à primeira vista, o significado de um elemento determinado.

Ao se utilizar do apoio das teorias linguísticas de Abel, Freud cria um impasse. Se por um lado a inexistência do “não” e do princípio da contradição no sonho é afirmada e endossada a partir de Freud, ela é igualmente limitada de diversas maneiras, pois o sonho opera condensações e deslocamentos de representações que supõem os princípios da contradição e da negação. Se Freud afirma que um elemento do sonho pode ser representado pelo seu oposto, como afirmar então que ele desconhece os princípios da contradição e da negação? Da mesma forma que se o mecanismo onírico da condensação supõe duas representações opostas representadas no mesmo elemento, como novamente excluir os princípios da contradição e da negação? O argumento procurado em Abel é ao mesmo tempo relevante e frágil e a contradição aparece no próprio Freud.

A respeito desse impasse, Milner (2008) propõe uma leitura para solucioná-lo, ao postular que a Interpretação de Sonhos funciona como se tudo no texto operasse como uma Verschiebung, um deslocamento no sentido cunhado por Freud, em que o fundamental não é o que é destacado como tese direta, mas sua consequência: a indecidibilidade. O prosseguimento das elaborações de Milner me permite uma íntima articulação entre A interpretação de sonhos, o paradigma estruturalista e o último ensino de Lacan: se me detenho ao essencial, a tese de Freud nos diz que o sonho é analisável em termos cada vez mais minimalistas. Essa hipótese minimalista é o que Milner chama de os Uns do sonho: o desejo, o pensamento e os elementos mínimos dos sonhos. Da mesma forma que a língua e a realidade são também analisáveis nos termos dos Uns: a palavra, a coisa, o ato.

O inconsciente se faz assim um sistema no qual se supõe o mínimo possível de propriedades. A Linguística Estrutural, por ser um paradigma de redução dos elementos a um critério de pura diferença em um sistema, sustenta-se em determinadas teses minimalistas. As propriedades mínimas do sistema linguístico são passiveis de ser decompostas em elementos igualmente mínimos, sendo que o elemento do sistema tem suas propriedades determinadas pelo próprio sistema. Por outro lado, encontramos a noção de registro do Um nos trabalhos de Lacan, a partir do Seminário 19 …Ou pior. O Um é solidário com as noções de gozo e de real da língua, por implicar uma vertente da interpretação não mais ancorada no discurso do Outro. Partindo dessas pontuais considerações, localizo, então, na Interpretação de Sonhos as duas faces dialéticas da linguagem que são objeto da Psicanálise: a linguagem simbólica que oferece base para a leitura estruturalista de Lacan, amplamente abordada no trabalho de interpretação e de produção de sentido nos sonhos; e o real irrepresentável da língua, correlato ao umbigo do sonho, tal como expressa Freud:

Mesmo no sonho mais minuciosamente interpretado, é frequente haver um trecho que tem de ser deixado na obscuridade; é que, durante o trabalho de interpretação, apercebemo-nos de que há nesse ponto um emaranhado de pensamentos oníricos que não se deixa desenredar e que, além disso, nada acrescenta a nosso conhecimento do conteúdo do sonho. Esse é o umbigo do sonho, o ponto onde ele mergulha no desconhecido. (Freud, 1976, p. 482).

Os Uns podem também se confundir com o registro do simbólico, se partimos das leis da condensação e do deslocamento que governam a dinâmica onírica. O que no sonho pode ser representado por um elemento, quantitativamente na realidade pode representar uma infinidade de elementos, o que é próprio da condensação. Do ponto de vista qualitativo, uma representação que seja fundamental no sonho pode ser sem importância na realidade ou inversamente, o que é próprio do deslocamento. Por fim, algo que possa ser confundido no sonho pode ser distinto ou mesmo opositivo na realidade, que é próprio do significado antitético como cunhado por Abel.

Segundo um comentário de Milner (2008) que, na verdade segue a mesma via associativa proposta por Freud, a não-coincidência quantitativa e qualitativa entre os diversos Uns pode ser concebida como o ponto crucial da análise, em que um desejo único pode ser enunciado de diversas maneiras, ser expresso em múltiplos e diversos atos. Se me detenho na expressão não-coincidência, plenamente desenvolvida pelos trabalhos de Authier-Revuz (2001), entendo melhor por que razão o sonho é considerado um discurso e um discurso heterogêneo. O sonho é um Outro, uma alteridade para o próprio sujeito sonhador, é o lugar privilegiado da encenação do inconsciente, que Freud denominou, a partir de Fechner, de uma outra cena (ein anderer Schauplatz). O registro do sonho e o registro da realidade formam uma cena discursiva heterogênea marcada pela não-coincidência de suas respectivas enunciações. O trabalho do sonho projeta, assim, em um plano único de representação, os vários Uns e suas correspondências.

Volto, após essas considerações, à pesquisa de Abel sobre o significado antitético das palavras primitivas e sua leitura empreendida por Freud. O psicanalista encontrou elementos no artigo de Abel para legitimar suas teorias sobre a linguagem no inconsciente, mas de maneira a especificar a própria não-coincidência dos Uns e sua indecidibilidade. A não-coincidência e a indecidibilidade podem ser ilustradas em Abel a partir de sua hipótese sobre o uso de sinais na linguagem falada no Egito antigo. Em sua opinião, era através do gesto que a significação desejada da palavra antitética poderia ser explicitada. A interpretação dos sonhos, ao contrário, não se vale de um elemento exterior à linguagem falada para escandir as significações e os sentidos das representações. Os Uns do sonho também se confundem em sua extensa rede associativa de condensações e deslocamentos, mas é no trabalho da própria linguagem, a partir da interpretação, que uma significação pode ser escandida, traçando o caminho da indecidibilidade rumo a não-coincidência dos Uns. A interpretação, assim como o gesto na linguagem primitiva, introduz uma distinção e não confunde a indecidibilidade; mas através de um elemento da própria linguagem falada e não exterior a ela. São duas modalidades distintas de explicitar a não-coincidência em Abel e em Freud.

Proponho agora me valer de um termo de Milner (1987) e me interrogar pelo desejo do linguista. Para Milner (2008), há algo em Abel que opera para Benveniste como da ordem de um choque. A partir da leitura de seu texto, é notável em Benveniste um grande incômodo com relação às elaborações de Abel e um esforço para desqualificá-las: ele não se furta em dizer que nenhum linguista qualificado, seja na época em que Abel escrevia ou posteriormente, conservou este texto sobre as palavras primitivas, seja em seus métodos ou em suas conclusões. Não deixa igualmente de afirmar que os dados de Abel são falsos e que há razões, ao se reportar à história das línguas, para tirar todo o crédito às especulações etimológicas de Abel que seduziram Freud.

Os ataques a Abel ganham contornos muito diretivos e pessoais se lembrarmos da passagem em que Benveniste, de uma maneira bastante irônica, expressa que se há insensibilidade à contradição ela não está na língua, mas na figura do próprio pesquisador. Há um forte aspecto das postulações de Abel que provoca séria resistência em Benveniste, que é sua hipótese sobre o uso de gestos para explicitar o polo opositivo da palavra antitética. As construções teóricas de Benveniste podem ser aproximadas do axioma lacaniano que enuncia que não há metalinguagem, o que quer dizer que, para ele, a Linguística não tem nada a saber de uma instância externa à língua. Para Abel, o recurso ao gesto consiste em introduzir diferenciações no signo linguístico a partir de um elemento exterior à língua. Para Benveniste, sendo fiel à sua herança saussureana, a língua executa por si própria todas as diferenças que ela tem a conhecer. Esse princípio é tão essencial que Saussure chega a afirmar que a língua pode se contentar com a oposição de algo com nada: há uma diferença pura inscrita no próprio sistema linguístico.

Se compreendermos que a língua é um sistema minimalista marcado pela relação de oposição entre seus termos, torna mais clara a compreensão de que as línguas primitivas não têm uma lógica particular que as diferenciem das línguas faladas atualmente. Da mesma maneira que a contradição e o ilogismo estão inscritos na própria natureza do signo linguístico e não podem ser particularizados para uma língua específica inscrita em determinado tempo histórico. É possível ler o axioma lacaniano o inconsciente é estruturado como uma linguagem à luz das críticas de Benveniste em relação a Abel. Conceber o inconsciente estruturado como uma linguagem tem uma importante consequência: o algoritmo se refere a uma linguagem qualquer, sem qualquer especificidade. Eu um momento mais tardio de seu ensino, no decorrer de uma lição do Seminário 19 …ou pior, esse ponto de vista estruturalista sobre a linguagem aparece de forma explícita no discurso de Lacan em uma citação que, embora longa, merece ser transcrita:

…se uma coisa digna do título de ´linguística como ciência´ se sustentou, algo que parece ter a língua ou a fala como objeto, foi sob a condição de os linguistas jurarem uns aos outros nunca , nunca mais – porque não se fizera senão isso durante séculos- nunca mais, nem mesmo de longe, aludir à origem da linguagem. Essa foi uma das palavras de ordem que dei a esta forma de introdução que se articulou em minha formulação ´o inconsciente é estruturado como uma linguagem´. (…) Não se trata, de modo algum, de especular sobre alguma origem da linguagem. (Lacan, 2012, p. 67).

A solidariedade de Benveniste com o Estruturalismo coloca-o em uma relação de proximidade com Lacan e Saussure e um distanciamento com Freud. Dentre esses três pensadores, Freud foi o único que não renunciou à questão das origens e submeteu o inconsciente, ao menos em um período de sua teoria, à conformação de operar dentro da particularidade de uma “língua primitiva” e não no universal da linguagem humana. Benveniste é claro e direto sobre essa questão:

Essas confusões parecem nascer, em Freud, do seu constante recurso às “origens”: origens da arte, da religião, da sociedade, da linguagem… Freud transpõe constantemente o que lhe parece “primitivo” no homem em um primitivo de origem, pois é exatamente na história deste mundo que ele projeta aquilo a que se poderia chamar uma cronologia do psiquismo humano. (Benveniste, 2005, p. 90).

Freud, um verdadeiro apaixonado pela questão das origens, como denuncia o prefixo alemão Ur, frequentemente empregado em seus conceitos, (Ursprache, Urvater, Urverdrängung, Urzene), desconhecia essa característica universal e estrutural do signo linguístico, apesar de no texto sobre as palavras primitivas, demonstrar um grande interesse por essas propriedades da linguagem.

É possível encontrar em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise algumas passagens em que Lacan também se posiciona criticamente em relação à ideia de uma linguagem primitiva e a uma perspectiva historicizante dos fenômenos linguístico e psíquico. Nesse texto, Lacan fala de um inconsciente histórico, mas em um sentido bastante diferente daquele tratado por Freud em sua solidariedade conceitual com Abel. Lacan aproxima a Psicanálise e a História de uma maneira que considero inovadora, por postular que ambas sejam ciências do particular, que lidam com fatos puramente acidentais e factícios, cujo valor último se reduz ao aspecto bruto do trauma.

É uma conceitualização do fenômeno histórico bastante diferente da concepção cronológica que geralmente aprendemos a construir a seu respeito. Um certo caráter atemporal da história, próprio do inconsciente, é igualmente formulado por Lacan (1998, p. 262): “Os acontecimentos se engendram numa historicização primária, ou seja, a história já se faz no palco em que será encenada depois de escrita, no foro íntimo e no foro externo.” Lacan é ainda bastante diretivo ao dizer, no encadeamento de sua exposição, que o que na Psicanálise se ensina o sujeito a reconhecer como seu inconsciente é sua história. O analista ajuda o sujeito a perfazer a historicização atual dos fatos que já determinaram em sua existência um certo número de reviravoltas históricas. Se esses fatos têm o sentido de fatos históricos, são como reconhecidos ou censurados em uma certa ordem discursiva já inscrita no inconsciente. Lacan (1998, p. 294) reafirma, assim, a estrutura de linguagem no simbolismo inconsciente, mas esse simbolismo “…tem o caráter universal de uma língua que se fizesse ouvir em todas as outras línguas, mas que, ao mesmo tempo, por ser a linguagem que capta o desejo no ponto exato em que ele se humaniza, (…) é absolutamente peculiar ao sujeito.” Logo a seguir, encontramos em Lacan (1998, p. 295) uma crítica velada a Freud, o que difere da crítica severa e diretiva que fez a Benveniste: “Linguagem primeira, dizemos também, com o que não queremos dizer língua primitiva, uma vez que Freud (…) decifrou-a por inteiro nos sonhos de nossos contemporâneos.” Não é difícil perceber o quanto Benveniste se ancorou nessas colocações lacanianas ao criticar o tema das origens em Freud.

Se por um lado é evidente, nesse período, o interesse de Lacan pela linguística póssaussureana e estruturalista, os métodos próprios dessa linguística não são utilizados por ele. Para Milner (2008)176, podemos concluir que Lacan se interessa pelo fato geral de que a língua tem propriedades estabelecidas pela linguística estruturalista, mas não se interessa pelos seus métodos.Dessa forma, Milner (2008) ainda propõe um modo de interpretar o axioma o inconsciente é estruturado como uma linguagem que me parece relevante: admitindo-se que uma linguagem tem propriedades de estrutura (conforme demonstra a Linguística), o inconsciente tem as mesmas propriedades. Em contrapartida, para que isso seja verdadeiro, não são relevantes os processos pelos quais essas propriedades são estabelecidas. A linguística que interessa a Lacan, e que é a mesma recuperada por Benveniste em seu artigo, é aquela que conhece a linguagem concentrando-se em reter dela somente as propriedades mínimas de um sistema qualquer. Se a linguagem é um sistema, Benveniste e Lacan, ambos seguindo a trilha de Saussure, demonstram a incorreção do pensamento freudiano ao articular os processos inconscientes com uma linguagem especificamente primitiva.

Para finalizar este tópico, é importante chamar a atenção para o fato de que a decisão de Lacan de convocar um linguista para comentar o texto freudiano sobre o significado antitético das palavras primitivas não é casual, já que trata de um texto estranhamente silenciado na obra do próprio Lacan. É um desafio localizar em sua obra, ao menos em seus textos e seminários até o momento estabelecidos, qualquer referência a esse pequeno texto freudiano, que tem maior reconhecimento no meio linguístico que psicanalítico. Coube a Benveniste a incumbência de comentar esse opaco texto e nesse comentário encontramos, nas palavras de Miller (2008), um momento benvenisteano por excelência no que diz respeito às significações opostas.

 

FONTES DE CONSULTA E REFERÊNCIA BIBLIOGRAFICA:

  • ABMPDF2019 – Apostilas, vídeos, slides, A Significação Antitética das Palavras Primitivas – Módulo XI.
  • Freud, S.A. A Significação Antitética das Palavras Primitivas, IN Obras Completas, Vol. XI.
  • Freud, S. (1910B) – A Significação Antitética das Palavras Primitivas. In: Freud, S. Obras Completas, Rio de Janeiro (1996). Volume XI.
  • BENVENISTE, E. Problemas de linguística geral.Tradução de M. da G. Novak et al. Campinas: Pontes, 2005.
  • FREUD, S. Sobre o sentido antitético das palavras primitivas. In: FREUD, S. Obras completas de Sigmund Freud.
  • FREUD, S. A interpretação de sonhos.Tradução de J. Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. LACAN, J. Seminário 19: …ou pior. Tradução de V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012.

 

Dilma de Fátima Queiroz – Estudante de Psicanálise – Turma: A.S.2019

 

Excelente:

Menção Honrosa

Prof. Luiz Mariano