Proposição de Lacan / 1967

Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola Psicanálise ( por Lacan)

por  JACQUES LACAN ( 09/10/1967)
 
 
Antes de lê-la, assinalo que convém entendê-la com base na leitura, a ser feita ou refeita, de meu artigo “Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956” (páginas 461-95 de meus Escritos/Na edição brasileira, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998. (N.E.).

Vamos tratar de estruturas asseguradas na psicanálise e de garantir sua efetivação no psicanalista.
Isso se oferece à nossa Escola, após uma duração suficiente de órgãos esboçados com base em princípios limitativos. Não instituímos o novo senão no funcionamento. É verdade que daí surge a solução para o problema da Sociedade Psicanalítica.
A qual se encontra na distinção entre a hierarquia e o gradus.
Produzirei, no início deste ano, este passo construtivo:
1) produzi-lo — mostrá-lo a vocês;
2) colocar vocês em condição de produzir seu aparelho, o qual deverá reproduzir esse passo nesses dois sentidos.
Lembremos entre nós o existente.
Antes de mais nada, um princípio: o psicanalista só se autoriza de si mesmo. Esse princípio está inscrito nos textos originais da Escola e decide sua posição.
Isso não impede que a Escola garanta que um analista depende de sua formação.
Ela pode fazê-lo, por sua própria iniciativa.
E o analista pode querer essa garantia, o que, por conseguinte, só faz ir mais além: tornar-se responsável pelo progresso da Escola, tornar-se psicanalista da própria experiência.
Olhando para isso por esse prisma, reconhece-se que, a partir de agora, é a essas duas formas que correspondem:
I. O AME, ou analista membro da Escola, constituído simplesmente pelo fato de a Escola o reconhecer como psicanalista que comprovou sua capacidade.
É isso que constitui a garantia proveniente da Escola, destacada desde o começo. Sua iniciativa compete à Escola, onde só se é admitido com base no projeto de um trabalho e sem consideração para com a proveniência nem as qualificações. Um analista praticante só é registrado nela, no começo, nas mesmas condições em que nela se inscrevem o médico, o etnólogo e tutti quanti.
II. O AE, ou analista da Escola, a quem se imputa estar entre os que podem dar testemunho dos problemas cruciais, nos pontos nodais em que se acham eles no tocante à análise, especialmente na medida em que eles próprios estão investidos nessa tarefa ou, pelo menos, sempre em vias de resolvê-los.
Esse lugar implica que se queira ocupá-lo: só se pode estar nele por tê-lo demandado de fato, senão formalmente.
Que a Escola pode garantir a relação do analista com a formação que ela dispensa, portanto, está estabelecido.
Pode fazê-lo e, portanto, deve fazê-lo.
É aí que aparece a falha, a falta de inventividade para exercer um ofício (ou seja, aquele de que se vangloriam as sociedades existentes), encontrando para ele caminhos diferentes, que evitem os inconvenientes (e os malefícios) do regime dessas sociedades.
A idéia de que a manutenção de um regime semelhante é necessária para regular o gradus deve ser salientada em seus efeitos de mal-estar. Esse mal-estar não basta para justificar a manutenção da idéia. E menos ainda seu retorno prático.
Que existe uma regra do gradus está implícito numa escola, mais ainda certamente, do que numa sociedade. Pois numa sociedade, afinal de contas, não há nenhuma necessidade disso, se uma sociedade só tem interesses científicos.
Mas existe um real em jogo na própria formação do psicanalista. Afirmamos que as sociedades existentes fundam-se nesse real.
Partimos também do fato, que tem todas as aparências a seu favor, de que Freud as quis tais como são.
Não menos patente — e concebível, para nós — é o fato de que esse real provoca seu próprio desconhecimento, ou até produz sua negação sistemática.
Está claro, pois, que Freud correu o risco de uma certa parada. Talvez mais: que viu nela a única proteção possível para evitar a extinção da experiência.
Que nos confrontemos com a questão assim formulada não é privilégio meu. É a própria continuação, digamos ao menos quanto aos analistas da Escola, da escolha que eles fizeram pela Escola.
Encontram-se agrupados nela por não terem querido através de uma votação aceitar o que esse voto pautaria: a pura e simples sobrevivência de um ensino, o de Lacan.
Quem quer, por outro lado, que continue a dizer que se tratava da formação de analistas, estará mentindo. Pois bastou que se votasse no sentido desejado pela IPA para obter o ingresso nesta a todo o pano, só faltando receber a ablução, por um breve período, de um século made in English (não se há de esquecer o French group). Meus analisantes, como se costuma dizer, foram até particularmente bem-vindos por lá, e o seriam ainda caso o resultado pudesse ser o de me fazer calar.
Isso é relembrado todos os dias a quem quiser ouvir.
Foi, portanto, a um grupo para o qual meu ensino era tão precioso ou tão essencial que cada um, deliberando, marcou preferir a vantagem oferecida — e isto sem enxergar adiante, tal como, sem enxergar adiante, interrompi meu seminário em seguida à referida votação —, foi a esse grupo em dificuldade de encontrar uma saída que ofereci a fundação da Escola.
Por essa escolha, decisiva para os que aqui estão, marca-se o valor do que está em jogo. Pode haver algo que está em jogo que vale para alguns a ponto de lhes ser essencial, e este é meu ensino.
Se o referido ensino é sem rival para eles, ele o é para todos, como provam os que aqui se comprimem sem haverem pago o preço, ficando suspensa para eles a questão do lucro que lhes é permitido.
Sem rival, aqui, não significa uma avaliação, mas um fato: nenhum ensino fala do que é a psicanálise. Em outros lugares, e de maneira declarada, cuida-se apenas de que ela seja conforme.
Existe uma solidariedade entre a pane ou os desvios mostrados pela psicanálise e a hierarquia que nela impera — e que designamos, com benevolência, como hão de reconhecer, como a de uma cooptação de doutos.
A razão disso é que tal cooptação promove o retorno a um status de imponência, conjugando a pregnância narcísica com a astúcia competitiva. Retorno que restabelece reforços do relapso, o que a psicanálise didática tem por fim eliminar.
É esse o efeito que lança sua sombra sobre a prática da psicanálise — cujo término, objeto e até objetivo revelam-se inarticuláveis, após pelo menos meio século de experiência ininterrupta.
Remediar isso, entre nós, deve ser feito pela constatação da falha que registro, longe de pensar em encobri-la.
Mas para colher nessa falha a articulação que falta.
Ela só faz confirmar o que se encontra por toda parte e é sabido desde sempre: que não basta a evidência de um dever para que ele seja cumprido. É por intermédio de sua hiância que ele pode ser posto em ação, e o é toda vez que se encontra o meio de utilizá-la.
Para introduzi-los nisso, eu me apoiarei nos dois momentos da junção do que chamarei, neste arrazoado, respectivamente, de psicanálise em extensão, ou seja, tudo o que resume a função de nossa Escola como presentificadora da psicanálise no mundo, e psicanálise em intensão, ou seja, a didática, como não fazendo mais do que preparar operadores para ela.
Esquece-se, com efeito, sua pregnante razão de ser, que é constituir a psicanálise como uma experiência original, levá-la ao ponto em que nela figura a finitude, para permitir o a posteriori, efeito de tempo que, como sabemos, lhe é radical.
Essa experiência é essencial para isolá-la da terapêutica, que não distorce a psicanálise somente por relaxar seu rigor.
Observaria eu, com efeito, que não há definição possível da terapêutica senão a de restabelecimento de um estado primário. Definição, justamente, impossível de enunciar na psicanálise.
Quanto ao primum non nocere, não falemos nisso, já que ele é instável por não poder ser determinado como primum no começo — donde optar por não causar dano! Tentem. É muito fácil, nestas condições, de se creditar a um tratamento qualquer o fato de ele não haver causado dano a algo. Esse traço forçado só tem interesse por decorrer, sem dúvida, de um indecidível lógico.
Podemos encontrar os tempos idos e revolvidos em que aquilo a que se tratava de não causar dano era a entidade mórbida. Mas o tempo do médico está mais implicado do que se supõe nessa revolução — pelo menos, a exigência, tornada mais precária, do que torna médico ou não um ensino. Digressão.
Nossos pontos de junção, onde têm que funcionar nossos órgãos de garantia, são conhecidos: são o começo e o fim da psicanálise, como no xadrez. Por sorte, são eles os mais exemplares, por sua estrutura. Essa sorte deve provir do que chamamos de encontro.
No começo da psicanálise está a transferência. Ela ali está graças àquele que chamaremos, no despontar desta formulação, o psicanalisante.O que comumente se chama o psicanalisado, por antecipação. Não temos que dar conta do que a condiciona. Pelo menos aqui. Ela está ali no começo. Mas o que é?
Fico admirado de que ninguém jamais tenha pensado em me objetar, considerados certos termos de minha doutrina, que a transferência por si só cria uma objeção à intersubjetividade. Chego até a lamentá-lo, visto que nada é mais verdadeiro: ela a refuta, é seu obstáculo. Aliás, foi para estabelecer o fundo contra o qual se pode perceber o contrário que promovi, desde o começo, o que implica de intersubjetividade o uso da fala. Esse termo foi, portanto, um modo — um modo como outro qualquer, diria eu, se não se me houvesse imposto — de circunscrever o alcance da transferência.
A esse respeito, ali onde convém que alguém legitime seu lote universitário, há quem se apodere do referido termo, tido, sem dúvida por eu o haver usado, como levitador. Mas quem me lê pode observar a “ressalva” com que ponho em jogo essa referência no que concerne à concepção da psicanálise. Isso faz parte das concessões educativas a que tive de me entregar em nome do contexto de fabuloso ignorantismo em que tive que proferir meus primeiros seminários.Pode alguém duvidar agora de que, ao relacionar com o sujeito do cogito aquilo que nos revela o inconsciente, de que, ao haver definido a distinção entre o outro imaginário, familiarmente chamado pequeno outro e o lugar de operação da linguagem, postulado como sendo o grande outro, eu indique com bastante clareza que nenhum sujeito é suponível por Outro sujeito, se esse termo tiver que ser tomado pelo lado de Descartes? Que Descartes precise de Deus, ou melhor, da verdade com que o credita, para que o sujeito venha alojar-se sob a mesma capa que veste enganosas sombras humanas, ou que Hegel, ao retomá-lo, enuncie a impossibilidade da coexistência das consciências, na medida em que se trata do sujeito fadado ao saber — já não é isso o bastante para apontar a dificuldade, da qual precisamente nosso impasse, o do sujeito do inconsciente, oferece a solução… a quem sabe constituí-la?
É verdade que, nisso, Jean-Paul Sartre, sumamente capaz de perceber que a luta de morte não é essa solução, já que não se pode destruir um sujeito, e que também em Hegel ela é anteposta no nascimento, profere entre quatro paredes [huis clos] sua sentença fenomenológica: trata-se do inferno. Mas, como ela é falsa, e de maneira que pode ser julgada pela estrutura — já que bem mostra o fenômeno, que o covarde, não sendo louco, pode muito bem se arranjar com o olhar que o fita — essa sentença prova igualmente que o obscurantismo tem sua mesa posta não apenas nos ágapes da direita.
O sujeito suposto saber (Neste parágrafo e no seguinte Lacan distingue o termo aqui utilizado, néant, de outros três: nul/nulité (nulo/nulidade), vide (vazio) e rien (nada). Por essa razão, fomos levados a uma tradução menos literal.) é, para nós, o eixo a partir do qual se articula tudo o que acontece com a transferência. Cujos efeitos escapam quando, para apreendê-los, faz-se uma pinça com o desajeitado pun que vai da necessidade da repetição à repetição da necessidade.
Aqui, o levitante da intersubjetividade mostrará sua finura ao indagar: sujeito suposto por quem, senão por outro sujeito?
Uma lembrança de Aristóteles, uma pitada das categorias, por gentileza, para desenlamear esse sujeito do subjetivo. Um sujeito não supõe nada, ele é suposto.
Suposto, ensinamos nós, pelo significante que o representa para outro significante.
Escrevamos como convém o suposto desse sujeito colocando o saber em seu lugar de adjacência da suposição:
Reconhecemos na primeira linha o significante S da transferência, isto é, de um sujeito, com sua implicação de um significante que diremos ser qualquer, ou seja, que supõe apenas a particularidade no sentido de Aristóteles (sempre bem-vindo) e que, em virtude disso, supõe mais outras coisas. Se ele é denominável por um nome próprio, não é por se distinguir pelo saber, como veremos.
Abaixo da barra, embora reduzida ao palmo supositivo do primeiro significante, o S representa o sujeito resultante, que implica dentro dos parênteses o saber, supostamente presente, dos significantes que estão no inconsciente, significação esta que faz as vezes do referencial ainda latente na relação terceira que o liga ao par significante-significado.
Vemos que, embora a psicanálise consista na manutenção de uma situação combinada entre dois parceiros, que nela se colocam como o psicanalisante e o psicanalista, ela só pode desenvolver-se ao preço do constituinte ternário, que é o significante introduzido no discurso que se instaura, aquele que tem nome: o sujeito suposto saber, esta uma formação não de artifício, mas de inspiração, como destacada do psicanalisante.
Temos de ver o que habilita o psicanalista a responder a essa situação que percebemos não envolver sua pessoa. Não apenas o sujeito suposto saber não é real de fato, como também não há nenhuma necessidade de que o sujeito em atividade na conjuntura, o psicanalisante (o único a falar, a princípio), lhe faça essa imposição.
Isso é tão pouco necessário, aliás, que comumente nem é verdade: o que é demonstrado, nos primeiros tempos do discurso, por uma forma de se certificar que a roupa não cai bem no psicanalista — garantia contra o temor, se assim posso dizer, de que ele introduza suas próprias costuras [plis] cedo demais.
O que nos importa aqui é o psicanalista em sua relação com o saber do sujeito suposto, não secundária, mas direta.
É claro que, do saber suposto, ele nada sabe. O Sq da primeira linha nada tem a ver com os S encadeados da segunda, e só pode ser encontrado neles por acaso. Assinalamos esse fato para nele reduzir a estranheza da insistência de Freud em nos recomendar que abordemos cada novo caso como se não tivéssemos aprendido coisa alguma com suas primeiras decifrações.
Isso não autoriza o psicanalista, de modo algum, a se dar por satisfeito com saber que nada sabe, pois o que se trata é do que ele tem de saber.
O que ele tem de saber pode ser traçado pela mesma relação “em reserva” pela qual opera toda lógica digna desse nome. Isso não significa nada em “particular”, mas se articula numa cadeia de letras tão rigorosas que, sob a condição de não se errar nenhuma, o não sabido ordena-se como o quadro do saber.
O espantoso é que com isso descobrimos algo — os números transfinitos, por exemplo. Que acontecia com eles, antes? Aponto aqui a relação deles com o desejo que lhes deu consistência. É útil pensar na aventura de um Cantor, aventura que justamente não foi gratuita, para sugerir a ordem, não fosse ela transfinita, em que se situa o desejo do psicanalista.
Essa situação explica, inversamente, a aparente facilidade com que se instala, nos cargos de direção das sociedades existentes, o que realmente conviria chamar de ocos. Entendam-me: o importante não é a maneira como esses ocos se mobiliam (discurso sobre a bondade?) para quem está de fora, nem a disciplina pressuposta pelo vazio mantido internamente (não se trata de burrice), mas sim que esse oco (do saber) é reconhecido por todos — objeto usual, se assim podemos dizer, para os subordinados, e moeda corrente de sua apreciação pelos Superiores.
A razão disso encontra-se na confusão a respeito do zero, onde se fica num campo em que ela não tem vez. Não há ninguém que se preocupe, no gradus, em ensinar o que distingue o vazio do nada — o que, no entanto, não é a mesma coisa —, nem entre o traço referencial da medida e o elemento neutro implicado no grupo lógico, nem tampouco entre a nulidade da incompetência e o não-marcado da ingenuidade, a partir do que muitas coisas assumiriam seu lugar.
Foi para fazer frente a essa falha que produzi o oito interior e, de modo geral, a topologia com que o sujeito se sustenta.
O que deve predispor um membro da Escola a tais estudos é a prevalência, que vocês podem apreender no algoritmo produzido acima, mas que não deixa de persistir pelo fato de ser ignorada, a prevalência, manifesta onde quer que seja — tanto na psicanálise em extensão como na psicanálise em intensão —, daquilo que chamarei de saber textual, para contrastá-la com a idéia referencial que a mascara.
Em todos os objetos que a linguagem propõe não apenas ao saber, mas que inicialmente trouxe ao mundo da realidade, da realidade da exploração inter-humana, não se pode dizer que o psicanalista seja perito. Isso seria bom, mas, na verdade, é muito pouco.
O saber textual não era parasita animando uma lógica da qual a nossa tira lições para sua surpresa (refiro-me à da Idade Média), e não foi à sua custa que ela soube fazer frente à relação do sujeito com a Revelação.
Não é pelo fato de o valor religioso dele ter se tornado indiferente para nós que seu efeito na estrutura deve ser negligenciado. A psicanálise tem consistência pelos textos de Freud, esse é um fato irrefutável. Sabemos em que, de Shakespeare a Lewis Carroll, os textos contribuem para seu espírito e seus praticantes.
É esse o campo em que se discerne quem admitir em seu estudo. Foi dele que o sofista e o talmudista, o propagador de contos e o aedo tiraram a força que, a cada instante, mais ou menos desajeitadamente, recuperamos para nosso uso.
Que um Lévi-Strauss, em suas mitológicas, lhe dê seu estatuto científico, é bom para nos facilitar fazer dele um limiar para nossa seleção.
Recordemos o guia fornecido por meu grafo para a análise e a articulação que dele se isola do desejo nas instâncias do sujeito.
Isto é para salientar a identidade entre o algoritmo aqui precisado e o que é conotado em O banquete como o agalma.
Onde se diz melhor do que ali faz Alcibíades? Que as emboscadas do amor transferencial não têm por fim senão obter aquilo de que ele pensa ser Sócrates o continente ingrato?
Mas, quem sabe melhor do que Sócrates que ele só detém a significação que gera por reter esse nada, o que lhe permite remeter Alcibíades ao destinatário presente de seu discurso, Agatão (como que por acaso)? Isto é para lhes ensinar que, ao se obcecarem com o que lhes concerne no discurso do psicanalisante, vocês ainda não chegaram lá.
Mas, será que isso é tudo, se aqui o psicanalisante é idêntico ao agalma, a maravilha que nos deslumbra, a nós terceiros, como Alcibíades? Não será esta, para nós, uma oportunidade de vermos isolar-se o puro viés do sujeito como relação livre com o significante, aquela pela qual se isola o desejo do saber como desejo do Outro?
Como todos os casos particulares que compõem o milagre grego, esse só nos apresenta fechada a caixa de Pandora. Aberta, ela é a psicanálise, da qual Alcibíades não tinha necessidade.
Com o que chamei de fim da partida, chegamos — enfim — ao âmago de nossa colocação desta noite. O término da psicanálise superfluamente chamada de didática é, com efeito, a passagem do psicanalisante a psicanalista.
Nosso objetivo é formular uma equação cuja constante é o agalma.
O desejo do psicanalista é sua enunciação, a qual só pode operar se caso venha ali na posição do x:
desse mesmo x cuja solução entrega ao psicanalisante seu ser e cujo valor tem a notação (-j), hiância que designamos como a função do falo a ser isolada no complexo de castração, ou (a), quanto àquilo que o obtura com o objeto que reconhecemos sob a função aproximada da relação pré-genital. (É ela que o caso de Alcibíades mostra anular — o que se conota pela mutilação dos Hermes.)
A estrutura, assim abreviada, permite-lhes ter uma idéia do que acontece ao termo da relação transferencial, ou seja, quando, havendo-se resolvido o desejo que sustentara em sua operação o psicanalisante, ele não mais tem vontade, no fim, de levantar sua opção, isto é, de ficar com o resto que, como determinante de sua divisão, o faz decair de sua fantasia e o destitui como sujeito.
Não será esse o grande motus que convém guardarmos entre nós, que, como psicanalistas, dele tiramos nossa suficiência, enquanto a beatitude se oferece para além do esquecê-lo nós mesmos?
Não haveríamos, ao anunciá-lo, de desestimular os amadores? A destituição subjetiva gravada no bilhete de ingresso… não será isso provocar o horror, a indignação, o pânico ou até o atentado, ou, pelo menos, dar um pretexto para a objeção de princípio?
O simples estabelecer uma interdição daquilo que se impõe de nosso ser equivale a nos oferecermos a uma reviravolta do destino que é maldição. O que é recusado no simbólico, recordemos o veredito lacaniano, reaparece no real.
No real da ciência que destitui o sujeito de modo bem diferente em nossa época quando apenas seus partidários mais eminentes, como um Oppenheimer, perdem a cabeça.
Eis onde nos demitimos daquilo que nos faz responsáveis, ou seja, da posição em que fixei a psicanálise em sua relação com a ciência, a de extrair a verdade que lhe corresponde em termos cujo resto de voz nos é alocado.
Com que pretexto abrigamos essa recusa, quando se sabe perfeitamente da indiferença que protege a verdade e os sujeitos, todos juntos, e se sabe que, ao prometer a estes a primeira, isso só não dá na mesma para aqueles que já estão próximos dela? Falar de destituição subjetiva jamais deterá o inocente, que não tem outra lei senão seu desejo.
Só temos escolha entre enfrentar a verdade ou ridicularizar nosso saber.
Essa sombra espessa que encobre a junção de que me ocupo aqui, aquela em que o psicanalisante passa a psicanalista, é ela que nossa Escola pode empenhar-se em dissipar.
Não estou mais longe do que vocês nesta obra que não pode ser conduzida sozinho, já que a psicanálise constitui o acesso a ela.
Devo contentar-me aqui com um ou dois flashes a precedê-la.
Na origem da psicanálise, como não recordar aquilo que, entre nós, enfim lembrou Mannoni? — que o psicanalista é Fliess, isto é, o medicastro, o titilador de narizes, o homem a quem se revelou o princípio masculino e feminino nos números 21 e 28, gostem vocês ou não, em suma, aquele saber que o psicanalisante — Freud, o cientista, como se exprime a boquinha das almas abertas ao ecumenismo — rejeitava com toda a força do juramento que o ligava ao programa de Helmholtz e seus cúmplices.
O fato de esse artigo ter sido dado a uma revista que mal permitiu que a expressão “sujeito suposto saber” aparecesse nela, a não ser perdida no meio de uma página, em nada diminui o valor que ele pode ter para nós.
Ao nos relembrar a “análise original”, ele nos recoloca no nível da dimensão de miragem em que se assenta a posição do psicanalista, e nos sugere não ser garantido que ela venha a ser reduzida enquanto uma crítica científica não se houver estabelecido em nossa disciplina.
O título presta-se ao comentário de que a verdadeira análise original só pode ser a segunda, por constituir a repetição que da primeira faz um ato, pois é ela que introduz o a posteriori próprio do tempo lógico, que se marca pelo fato de que o psicanalisando passou a psicanalista. (Refiro-me ao próprio Freud, que com isso sanciona não ter feito uma auto-análise.)
Permito-me ainda lembrar a Mannoni que a escansão do tempo lógico inclui o que chamei de momento de compreender, justamente pelo efeito produzido (que ele retome meu sofisma) pela não compreensão, e que, ao eludir, em suma, o que constitui a alma de seu artigo, ele nos ajuda a compreender de esguelha.
Recordo aqui que o qualquer um que recrutamos com base em “compreender os doentes” se alista a partir de um mal-entendido que não é sadio como tal.
Agora, um flash de onde estamos. Com o fim da análise hipomaníaca, descrita por nosso Balint como a última moda, cabe dizê-lo, da identificação do psicanalisante com seu guia, estamos tocando na conseqüência da recusa anteriormente denunciada (recusa suspeita, Verleugnung?), que só deixa o refúgio da palavra de ordem, agora adotada nas sociedades existentes, da aliança com a parte sadia do eu [moi], a qual resolve a passagem ao analista pela postulação, nele, dessa parte sadia, desde o começo. De que serve, portanto, sua passagem pela experiência?
Tal é a posição das sociedades existentes. Ela rejeita nossa formulação num além da psicanálise.
A passagem de psicanalisante a psicanalista tem uma porta cuja dobradiça é o resto que constitui a divisão entre eles, porque essa divisão não é outra senão a do sujeito, da qual esse resto é a causa.
Nessa reviravolta em que o sujeito vê soçobrar a segurança que extraía da fantasia em que se constitui, para cada um, sua janela para o real, o que se percebe é que a apreensão do desejo não é outra senão a de um des-ser.
Nesse des-ser revela-se o inessencial do sujeito suposto saber, donde o futuro psicanalista entrega-se ao agalma da essência do desejo, disposto a pagar por ele em se reduzindo, ele e seu nome, ao significante qualquer.
Porque ele rejeitou o ser que não sabia a causa de sua fantasia no exato momento em que, finalmente, esse saber suposto, ele passa a sê-lo.
“Que ele saiba do que eu não sabia do ser do desejo, do que acontece com ele, ao ter vindo ao ser do saber, e que se apague.” Sicut palea, como diz Tomás sobre sua obra no fim da vida — como estrume.
Assim, o ser do desejo une-se ao ser do saber para renascer, no que eles se atam, numa tira feita da borda única em que se inscreve uma única falta, aquela que sustenta o agalma.
A paz não vem selar prontamente essa metamorfose em que o parceiro se esvaece, por já não ser mais do que o saber vão de um ser que se furta.
Tocamos aí na futilidade do termo liquidação com respeito a este furo, somente onde se resolve a transferência. Só vejo nisso, ao contrário das aparências, a denegação do desejo do analista.
Pois quem, ao divisar os dois parceiros jogando como as duas pás de uma tela que gira em minhas últimas linhas, não é capaz de captar que a transferência nunca foi senão o pivô dessa própria alternância.
Assim, daquele que recebeu a chave do mundo na fenda da impúbere, o psicanalista não mais tem que esperar um olhar, mas se vê tornar-se uma voz.
E esse outro que, quando criança, encontrara seu representante representativo em sua irrupção através do diário aberto em que se abrigava o campo de adubação dos pensamentos de seu genitor, devolve ao psicanalista o efeito de angústia em que ele oscila em sua própria dejeção.
Assim, o fim da psicanálise guarda em si uma ingenuidade sobre a qual se coloca a questão de saber se ela deve ser tida como garantia na passagem para o desejo de ser psicanalista.
Donde se poderia esperar, portanto, um testemunho correto sobre aquele que transpõe esse passe, senão de um outro que, como ele, o é ainda, esse passe, ou seja, em quem está presente nesse momento o des-ser em que seu psicanalista conserva a essência daquilo que lhe é passado como um luto, com isso sabendo, como qualquer outro na função de didata, que também para eles isso passará?
Quem, melhor do que esse psicanalisante no passe, poderia autenticar o que ele tem da posição depressiva? Não ventilamos aí nada pelo qual alguém possa se dar ares de importância, se não estiver no ponto.
É o que lhes proporei, dentro em pouco, como o ofício a ser confiado, no tocante à demanda do tornar-se analista da Escola, a alguns a quem denominaremos passadores.
Cada um deles terá sido escolhido por um analista da Escola, aquele que pode responder pelo fato de que eles estejam nesse passe ou que retornaram a ele, em suma, ainda estando ligados ao desenlace de sua experiência pessoal.
É com eles que um psicanalisante, para se fazer autorizar como analista da Escola, falará de sua análise, e o testemunho que eles poderão colher pelo vívido de seu próprio passado será daqueles que nenhum júri de aprovação jamais colhe. A decisão de tal júri seria esclarecida por isso, portanto, não sendo essas testemunhas juízes, é claro.
É desnecessário indicar que essa proposta implica uma acumulação da experiência, sua coleta e sua elaboração, uma seriação de sua variedade e uma notação de seus graus.
Poder surgir das liberdades do fechamento de uma experiência, é isso que decorre da natureza do a posteriori na significância.
De qualquer modo, essa experiência não pode ser evitada. Seus resultados devem ser comunicados: primeiro à Escola, para as críticas, e, correlativamente, colocados ao alcance das sociedades que, por mais que nos tenham tornado excluídos, nem por isso deixam de ser assunto nosso.
O júri em funcionamento, portanto, não pode abster-se de um trabalho de doutrina, para além de seu funcionamento como selecionador.
Antes de lhes propor uma forma, quero indicar que, de conformidade com a topologia do plano projetivo, é no próprio horizonte da psicanálise em extensão que se ata o círculo interior que traçamos como hiância da psicanálise em intensão.
Esse horizonte, eu gostaria de centrá-lo em três pontos de fuga em perspectiva, notáveis por pertencerem, cada um deles, a um dos registros cuja colusão na heterotopia constitui nossa experiência.
No simbólico temos o mito edipiano.
Observemos, em relação ao núcleo da experiência no qual acabamos de insistir, o que chamarei tecnicamente de facticidade desse ponto. Ele decorre, com efeito, de uma mitogênese, um de cujos componentes sabemos ser sua redistribuição. Ora, o Édipo, por lhe ser ectópico (caráter apontado por Kroeber), levanta um problema.
Abri-lo permitiria restaurar ou mesmo relativizar sua radicalidade na experiência.
Eu gostaria de iluminar meu ponto essencial simplesmente com o seguinte: retire-se o Édipo, e a psicanálise em extensão, diria eu, torna-se inteiramente da alçada do delírio do presidente Schreber.
Verifiquem a correspondência ponto a ponto, certamente não atenuada desde que Freud a assinalou, não declinando de sua imputação. Mas deixemos o que ofereceu meu seminário sobre Schreber para os que puderam ouvi-lo.
Há outros aspectos desse ponto que se referem a nossas relações com o exterior, ou, mais exatamente, a nossa extraterritorialidade — termo essencial no Escrito que tomei por prefácio desta proposição.
Observemos o lugar ocupado pela ideologia edipiana para como que dispensar a sociologia, há um século, de tomar partido, como antes ela tivera que fazer, quanto ao valor da família, da família existente, da família pequeno-burguesa na civilização — ou seja, na sociedade veiculada pela ciência. Beneficiamo-nos ou não do que cobrimos com isso, sem que o soubéssemos?
O segundo ponto constitui-se pelo tipo existente, de facticidade dessa vez evidente, de unidade: a sociedade de psicanálise, como encabeçada por um executivo de escala internacional.
Como dissemos, Freud assim o quis, e o sorriso constrangido com que desautorizou o romantismo da espécie de Komintern clandestino a que inicialmente dera sua carta branca (cf. Jones, citado em meu Escrito) só faz sublinhá-lo melhor.
A natureza dessas sociedades e o modo com base no qual elas obtemperam são esclarecidos pela promoção da Igreja e do Exército, por Freud, a modelos do que ele concebe como a estrutura do grupo. (É por esse termo, de fato, que hoje se deveria traduzir o Masse de sua Massenpsychologie.)
O efeito induzido pela estrutura assim privilegiada também se esclarece ao se lhe acrescentar a função, na Igreja e no Exército, do sujeito suposto saber. Estudo para quem quiser empreendê-lo: ele iria longe.
A nos atermos ao modelo freudiano, aparece de maneira flagrante o favorecimento que dele recebem as identificações imaginárias e, ao mesmo tempo, a razão que submete a psicanálise em intensão a limitar a elas sua consideração, ou até seu alcance.
Um de meus melhores alunos transpôs muito bem seu traçado para o próprio Édipo, definindo a função do Pai Ideal.
Essa tendência, como se costuma dizer, é responsável por se relegar ao ponto do horizonte anteriormente definido aquilo que é qualificável de edipiano na experiência.
A terceira facticidade, real, sumamente real, tão real que o real é mais hipócrita [bégueule] ao promovê-la do que a língua, é o que torna dizível o termo campo de concentração, sobre o qual nos parece que nossos pensadores, vagando do humanismo ao terror, não se concentraram o bastante.
Abreviemos dizendo que o que vimos emergir deles, para nosso horror, representou a reação de precursores em relação ao que se irá desenvolvendo como conseqüência do remanejamento dos grupos sociais pela ciência, e, nominalmente, da universalização que ela ali introduz.
Nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação.
Caberia atribuir a Freud ter querido, considerando sua introdução de nascença no modelo secular desse processo, assegurar a seu grupo o privilégio da insubmersibilidade universal de que gozam as duas instituições antes denominadas? Não é impensável.
Como quer que seja, esse recurso não torna mais cômodo para o desejo do psicanalista situar-se nessa conjuntura.
Recordemos que, se a IPA da Mitteleuropa demonstrou sua adaptação prévia a essa provação não perdendo nos referidos campos um só de seus membros, ela deveu a esse esforço supremo ver produzir-se, após a guerra, uma corrida, que não deixou de ter sua parcela de incompetentes (cem psicanalistas medíocres, lembremo-nos), de candidatos em cujo espírito a motivação de encontrar refúgio para a maré vermelha, fantasia de então, não estava ausente.

Que a “coexistência”, que bem poderia, também ela, ser esclarecida por uma transferência, não nos faça esquecer um fenômeno que é uma de nossas coordenadas geográficas, caberia dizer, e cujo alcance é mais mascarado pelas tagarelices sobre o racismo.

O final deste documento esclarece o modo como se poderia introduzir aquilo que só tende, ao inaugurar uma experiência, a tornar enfim verdadeiras as garantias buscadas.
Deixamo-las indivisas nas mãos daqueles que as têm por direito adquirido.

Não nos esqueçamos, no entanto, de que eles são os que mais padeceram com as provações impostas pelo debate com a organização existente. O que o estilo e os fins dessa organização devem ao black-out que incidiu sobre a função da psicanálise didática é evidente, desde que seja permitido um olhar sobre eles: daí o isolamento mediante o qual ela se protege a si mesma.

As objeções com que se deparou nossa proposição não decorrem, em nossa Escola, de um temor tão orgânico.

O fato de elas se haverem exprimido a propósito de um tema motivado já mobiliza a autocrítica. O controle das capacidades não mais é inefável, por requerer títulos mais justos.
É em provas dessa ordem que a autoridade se faz reconhecer.
Que o público dos técnicos saiba que não se trata de contestá-la, mas de retirá-la da ficção.

A Escola Freudiana não pode cair no tough sem humor de um psicanalista que conheci em minha última viagem aos EUA:

 

“A razão por que jamais atacarei as formas instituídas”, disse-me ele, “é que elas me asseguram sem problemas uma rotina que gera minha comodidade.”
Extraído da edição brasileira dos “Outros Escritos” da Editora Zahar.

 
Versão no idioma original:

 

Proposition du 9 octobre 1967 sur le psychanalyste de l’École
La commission de la garantie
 (Francês)