“Por que a guerra?”
Curiosamente, em 1932, Freud foi escolhido por Albert Einstein, o pai da física moderna, para responder esta questão. Isso foi possível porque o Comitê Permanente para a Literatura e as Artes da Liga das Nações orientou o Instituto Internacional para Cooperação Intelectual a promover cartas entre intelectuais de renome a respeito de assuntos do interesses comuns à Liga das Nações.
As duas missivas foram publicadas em Paris, em 1933, em alemão, francês e inglês simultaneamente, tendo sua circulação sido proibida na Alemanha.
Einstein questionava se havia alguma forma de livrar a humanidade da ameaça da guerra e chegou a declarar que Freud – por ser o criador da teoria, um estudioso do psiquismo humano e conhecedor da vida instintiva do homem – poderia elucidar e sugerir métodos educacionais que demarcassem caminhos e ações que resolveriam o problema, a ponto de tornar impossível qualquer conflito armado.
Ele desejava saber como seria possível, a ausência da guerra, a paz mundial à luz da Psicanálise.
Antecipando-se à resposta de Freud, ele afirma que as guerras ocorrem devido às questões políticas, psicológicas, sociais, culturais e econômicas, explanando-as a partir das seguintes idéias:
– pela ausência de um organismo internacional poderoso e parcial que congregasse as nações que se submeteriam às decisões legislativas e judiciárias julgadas por ele em nome da paz e do bem comum;
– pelo desmedido desejo de poder dos governantes;
– pela ganância dos grupos econômicos, principalmente os da indústria bélica, que encontram na guerra a chance de expandir negócios e autoridade;
– pelo poder de controle das classes dominantes que utilizam a imprensa, as escolas e a Igreja a seu serviço;
– por um sentimento de ódio e desejo de destruição que o homem traz dentro de si que opera de várias formas e em diversas circunstâncias, tais como: guerras civis, intolerância religiosa, nas questões sociais, nas perseguições das minorias sociais, etc …
Habilmente, Freud se desvencilhou da responsabilidade de propor medidas práticas e endossando o que fora colocado por Einstein, anunciou que seguiria seu rastro, ampliando-o com seus conhecimentos ou conjecturas psicanalíticas. Responde a questão a partir de duas das suas inúmeras teorizações sobre a subjetividade humana:
– a violência humana é inerente à condição biológica do homem, manifesta-se em todos os conflitos de relação a partir do processo mais remoto de socialização;
– o homem é mobilizado por dois instintos ou pulsões, cujas atividades são opostas entre si: a pulsão construtiva, erótica ou Eros e a pulsão destrutiva, de morte ou Tanatos.
Recordando “Totem e Tabu” – escrito em 1913, às vésperas da I Grande Guerra (1914-1918).
– Freud afirma que o poder é conquistado e mantido com a violência, que inicialmente se restringia à força muscular, substituída pela capacidade intelectual de construir e ter mais destreza no manejo de novas armas.
A finalidade era subjugar o adversário, tirando-lhe a vida ou dominando-o pela escravidão.
O vitorioso deveria estar atento à própria integridade física, garantindo que o escravo se sentisse intimidado a controlar seu desejo de vingança.
A seu turno, os derrotados unidos descobriram uma força que poderia ser transformada em lei ou direito de uma comunidade em detrimento do interesse de um só. Para que esse poder comum pudesse ser duradouro, instituíram regras, punições e o desenvolvimento dos vínculos emocionais.
Segundo Freud, o crescimento dos grupos em sociedade aconteceu mantendo-se o desequilíbrio das forças entre pais e filhos, homens e mulheres, senhores e escravos, reproduzindo-se, inclusive, na justiça da comunidade.
A lei é feita de acordo com os interesses dos governantes, contemplando muito pouco aos que se encontrava em estado de sujeição, o que certamente causa insatisfações e intranqüilidade.
Os detentores do poder se colocam acima da lei e fazem uso da violência, enquanto que os dominados do grupo buscam mais poder e igualdade de justiça, gerando conflitos, rebeliões e até guerras civis em nossos dias.
Assim como ocorre dentro de uma mesma comunidade, esses conflitos podem acontecer entre comunidades diferentes, entre nações ou entre confederação de nações.
Baseando-se no texto “Além do princípio do prazer” – escrito em 1920 – Freud aprofunda o que Einstein chamou de desejo de ódio e destruição do ser humano, falando sobre Eros e Tanatos, oposição entre amor e ódio, atração e repulsão, preservar e destruir, entre vida e morte.
Explica que um instinto está amalgamado ao outro e muito embora haja a predominância do instinto de morte, ambos são essenciais e atuam concomitantemente nas relações sociais.
Além do que haveria nos conflitos bélicos ou não motivos nobres ou vis, declarados ou ocultos, idealistas ou mercenários, mas eles apenas serviriam de fachada para os desejos destrutivos inconscientes.
TANATOS – O GOZO
Estes textos, escritos em períodos que precedem e sucedem a um grande conflito mundial, são fortemente marcados pelas experiências do pai e sogro que vivenciou as angústias e incertezas de quem espera notícias dos seus no front, bem como do analista e pensador de seu tempo atento aos lutos, melancolias, neuroses de guerra e aos corpos mutilados resultantes da atuação de Tanatos numa escala coletiva.
Mesmo apontando para a coexistência natural de opostos e a correlação de força entre eles, Freud, provavelmente contaminado pela máxima judaica “de que és pó e ao pó voltarás, pelos acontecimentos históricos a sua volta, pela inexorabilidade da morte biológica e pela compulsão à repetição de seus pacientes, num tom de rendição, constata quase que a supremacia de Tanatos.
A atuação de Tanatos é inversa à atuação de Eros e tanto um como outro podem direcionar seu poder de ação para o indivíduo ou para a coletividade.
Os conflitos pessoais do homem ao longo de sua existência são causa e efeito dos conflitos maiores que têm ocorrido na humanidade ao longo de sua história.
A violência civil e as guerras reproduzem no macrocosmo os embates que ocorrem no microcosmo de qualquer grupo.
Atualizando para este momento a questão de Einstein e as opiniões de ambos cientistas, o que se pode observar é que se vive o gozo da compulsão à repetição.
O desenrolar dos fatos mostra que o homem individual e coletivamente, para além do sintoma – que é nó de palavra, metáfora e, portanto, submete-se à interpretação e à simbolização – vive e mantém o gozo que escraviza, anula e gera sofrimento.
Os últimos acontecimentos, no dia 11 de setembro causaram o maior impacto na opinião pública e na economia mundial dos últimos tempos. Nesta aldeia global magnetizada pela tela da televisão e do computador, só não viu “com os olhos que a terra há de comer”, aquelas imagens impressionantes e inacreditáveis, “ao vivo e a cores”, quem é cego, já morreu ou foi proibido pelo Talibã. Instantaneamente, os noticiários, as revistas, os jornais e os correios eletrônicos explodiram em informações, articulações, elaborações, previsões e simbolizações do que aconteceu e do que viria acontecer.
As manifestações eram tão ambivalentes quanto os sentimentos não assumidos.
Se por um lado o acontecido indignava por significar a barbárie de ceifar vidas humanas civis, na rotina diária em seu ambiente de trabalho e sensibilizava por se pensar na angústia daqueles que tiveram tempo de perceber o que estava acontecendo e por se imaginar a dor e o sofrimento dos familiares das vítimas, também havia “uma espécie de gozo inconfessável, sinistro.
Afinal de contas, aquele que se colocava como o dominador, poderoso, despótico, manipulador, cruel e que gozava de todos, tal qual o pai de “Totem e Tabu”, finalmente se revelava como uma farsa do seu próprio imaginário.
Era vulnerável, poderia também ser atingido e experimentar o desconforto, a impotência, a perplexidade do dominado como ocorre na relação dialética do senhor e do escravo.
O que se viu parecia com as tomadas cinematográficas, lembrava as imagens forjadas pelos técnicos em efeitos especiais da sétima arte.
O rico imaginário hollywoodiano através de seus profetas eletrônicos colocou na tela a destruição da metrópole americana em vários filmes, sendo Armageddon, Godzilla, Independence Day, Nova York sitiada e Day After os mais recentes.
Se fosse um sintoma, é possível que a significação talvez estivesse no saber boicotado de que a onipotência é virtual, uma farsa como o construto do cinema; talvez estivesse no saber escamoteado de que o gozo do dominador alimenta o ódio, o desejo de vingança e de rebeldia do dominado; talvez estivesse na culpa neurótica pelo gozo perverso, e, talvez estivesse no desejo não encarado de que a ordem seja subvertida e se ponha fim ao gozo enquanto gerador de sofrimento.
Estas pontuações não obstaculizam a persistência, o encistamento no gozo, a fuga da simbolização.
O presidente do país – que alavanca os outros sete que ditam as leis, as regras e de quem pode gozar nesta atual ordem mundial – aprisiona a opinião pública no imaginário e narcisicamente, como senhor do universo, dá a entender que tem a força e brada que “é a luta do bem contra o mal”, “que queremos Bin Laden vivo ou morto” e que “quem não estiver conosco, estará contra nós” .
A reação do senhor Bush pode ser explicada, também, pela audácia patética do ato terrorista.
Sem dar um tiro, sem usar um artefato bélico, sem usar um veículo de guerra, sem acionar um daqueles satélites que são capazes de tornar legíveis placas de automóveis em qualquer parte do mundo, eles abalaram os poderes da terra e dentro do próprio território norte americano.
Freud, se vivo fosse, teria que contabilizar este golpe como o quarto a fragilizar o narcisismo humano , pelo menos o narcisismo dos poderosos da ordem universal hegemônica. Foram abalados os três pilares do controle mundial: o desmoronamento das torres gêmeas – o coração comercial do mundo, o protótipo do poder absoluto, do capitalismo neoliberal; o ataque ao Pentágono – um dos símbolos de orgulho, da segurança nacional e da supremacia e controles ianques; bem como a ataque frustrado à Casa Branca – a fortaleza da democracia ocidental.
Numa atitude compreensível, do ponto de vista dos familiares das vítimas, mas nem por isso menos preservadora do narcisismo, a imprensa americana decidiu fazer cobertura sem sangue e corpos. Em Nova York, muitos fotógrafos e cinegrafistas foram detidos para evitar as imagens.
A fotografia vista, só um jornal as publicou, sendo taxado de “ovelha negra” além de ter sido chamado a dar explicações
Aliás, clama por entendimento imaginário e simbólico esse tom blasé dessas últimas violências, “o tom pastel da tragédia é próprio das guerras modernas, os soldados devem ir à luta, mas não podem morrer, e se morrerem, não diante das câmara ”.
A guerra – que nunca teve méritos ou valores positivos, pelo menos para os pacifistas – está mais para quem detém a tecnologia, sabe apertar botões e não precisa ter coragem e nem culpa. Os ataques são feitos por bombardeiros, bombas guiadas a laser e mísseis disparados a centenas de quilômetros de distância, seja do alto ou horizontalmente.
Aquela ação chamada “tempestade no deserto” matou 100 mil soldados e 100 mil civis iraquianos e 70 soldados americanos e pela tela da televisão, parecia um novo modelo de vídeo game ou talvez um show pirotécnico de mau gosto.
Essa mesma visão neo-realista, encobridora da realidade, tem sido transmitida na chacina que o poderio bélico americano tem executado contra o que resta dos afegãos e do seu território.
A dor, o sofrimento gerados, mais uma vez pelo desrespeito à vida humana, homens, mulheres e crianças civis, logo se transformarão em números nos anuários e serão mais uma página virada da história, se não houver denúncias e manifestações de solidariedade.
Enquanto a mídia através de imagens e textos parciais esconde as vítimas, forja em montagens comemorações árabes e reduz o ato terrorista à insanidade de fanáticos religiosos, que precisam ser exterminados, há ainda aqueles que não fazem uma leitura maniqueísta do fato e no mundo todos bradam vozes, imagens e escritos que denunciam e dão, a saber, que esses últimos fatos não são resultantes de uma loucura religiosa.
Numa re-edição do pai da horda primeva, que impunha seu gozo perverso a serviço de Tanatos, foram recordadas ações do governo americano nos quatro cantos do mundo, principalmente, na Criméia, em Hiroshima e Nagasaki, no Vietnam, na África do Sul, em Cuba, nos golpes militares e torturas na América Latina, na questão palestina, no Iraque e mais recentemente no Afeganistão.
Felizmente, o brado encontra eco entre os cidadãos americanos que se identificam com aqueles povos e países submetidos à insensatez do poder sem limites, ainda que imaginário.
Oficiais de altos escalões têm se colocado em oposição à política externa americana, e um deles chegou a declarar que “se realmente os EUA fossem a favor da paz, da democracia e dos direitos humanos não seríamos alvos de terroristas. (…) negamos a liberdade e os direitos humanos a muitos países (…)
Os EUA têm sido responsáveis por muito sofrimento em várias partes do mundo. (…) Precisaríamos ouvir as populações que estão contra nós, no intuito de aliviar seus sofrimentos”.
Nestes recortes de uma entrevista, pode-se vislumbrar que é possível amortecer o gozo, fragilizar a prepotência.
Tanatos pode ter seu poderio limitado pela atuação de seu oposto.
EROS – O SABER
Ainda que a leitura seja de oposição, no que concerne à Psicanálise, não se deve cair na armadilha simplista do maniqueísmo.
No funcionamento humano, não existe uma pulsão do bem e outra do mal. Ambas estão imbricadas a serviço do homem e são responsáveis pela perpetuação da espécie e renovação da vida. A existência do homem não chegaria a esse nível de complexidade se ambas pulsões não agissem.
O processo civilizatório tem provado que elas podem ser dominadas para retro alimentar essa mesma civilização podem ser educadas, controladas, e usadas a serviço da civilização.
Freud elabora a utopia que o domínio do intelecto sobre a vida instintual e o processo civilizatório possa levar a termo a ameaça da guerra.
Tal fato seria possível pelo caminho do conhecimento, pelo acesso ao saber, de forma abrangente e incondicional. Seria uma nova versão do fruto endêmico do conhecimento do bem e do mal.
O saber não passível do castigo ou punição, mas como possibilidade de ser ter consciência e agir.
Pragmaticamente, Freud sugere métodos indiretos para combater a guerra: estimular a atuação de Eros, o antagonista de Tanatos, aprofundando os laços emocionais humanos a ponto de se praticar o “ame a teu próximo como a ti mesmo” e motivando a identificação que aproxima os homens e gera a comunhão, o compartilhar.
Sinaliza que se deve dar maior atenção aos líderes natos a fim de que eles aprendam a subordinar seus instintos à razão.
Defende a abolição de atos violentos contra a liberdade individual e de pensamento praticados pelo Estado e pela Igreja que podem influenciar negativamente as novas mentes em formação (Freud,1933).
Há que se punir crime contra a humanidade por ação ou reação, não importando de que lado parta, para se educar o princípio de morte, criar oportunidade de Tanatos adiar seu gozo ou sublimá-lo e se estimular a vocação pela vida deste planeta.
Há que se dar oportunidade a Eros e que Tanatos não se antecipe, mas que surja como resultado do desgaste natural da manifestação do seu contrário.
Apologista do saber, Freud remete-se àqueles que se indignam ativamente contra guerra, creditando essa reação negativa à consciência de que cada pessoa tem direito a sua própria vida.
É sabido que a guerra destrói vidas, as esperanças, avilta o homem, estimula o assassinato, arrasa os patrimônios culturais dos povos, porque pode significar a destruição da raça humana (Freud,1933).
Mesmo após ter teorizado a pulsão de morte, em resposta a Einstein, Freud sustenta que o homem se indigna e até perdeu o interesse e a motivação para a guerra porque é prejudicial à função sexual e psiquicamente ele já está mais evoluído; seus instintos destrutivos já estão mais controlados e os impulsos que antes eram agradáveis aos ancestrais, hoje são indiferentes ou até intoleráveis, porque esses impulsos foram internalizados.
Os civilizados são pacifistas e repudiam a guerra intelectual, emocional e constitucionalmente (Freud,1933).
É importante perceber que no instante em que a o pai da Psicanálise foi chamado a opinar sobre a causa da guerra, isso quer significar;
– que esta forma de saber detém um conhecimento;
– que há uma demanda para que esse conhecimento seja expresso;
– que há uma manifestação de acolhimento àquilo que tem a dizer este saber;
– e que a contribuição deste conhecimento tem um espaço que exige ocupação no entendimento das questões humanas.
George Orwel, no seu romance “A revolta dos bichos”, mostra a força e a importância da conscientização pelo conhecimento, da união e da solidariedade para as conquistas e o controle da violência e da injustiça.
Aponta que o saber leva à mudança de atitude dos subjugados o que pode desequilibrar as forças, alterar os atores, as posições e as relações.
No entanto, apesar das conquistas, é preciso haver uma atenção contínua para não se retornar às mazelas anteriores.
Na qualidade de mais um instrumento que procura conhecer o homem na sua subjetividade e relações sociais, a Psicanálise tem uma teoria, uma prática a compor com os outros saberes. A transdisciplinaridade tão buscada pela ciência, que nada mais é que a solidariedade dos conhecimentos na abordagem do objeto comum inaugura um novo momento nas ciências que estuda o homem.
Urge que a Psicanálise conquiste através do ensino e de suas instituições o seu espaço no campo do saber e no campo da prática.
Socializar-se, isto é, atingir às populações de baixa renda, sem banalizar-se, é um desafio que já está sendo enfrentado por algumas instituições e que certamente redundará em muitas elaborações, teorizações e avanços.
Ainda que com alguns equívocos, a Psicanálise foi considerada como um instrumento de educação pelo viés do conhecimento de si mesmo, a partir de cada indivíduo. Se o processo civilizatório diminui a violência, deve-se investir na verdadeira educação, aquela que gera compromisso, atitudes e atuações que podem tornar o mundo menos violento, menos injusto e mais propício à vida, ao conhecimento e às criações humanas.
Dra. Dalva de Andrade Monteiro
Médica Homeopata e Psicanalista
Associada do Círculo Psicanalítico da Bahia.
Fonte Consultada:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-94792002000100006