MARTELO DAS BRUXAS

O MARTELO DAS BRUXAS

O livro que orientou séculos de perseguição às mulheres

Na Idade Média, os médicos eram solicitados a participarem da caça às bruxas, sendo encarregados de distinguir com precisão os fenômenos manifestados pelas possuídas, traçar um diagnóstico diferencial entre uma doença conhecida, uma simulação ou um caso de possessão demoníaca. Trata-se de uma exigência bastante delicada, pois evocava-se tanto o diagnóstico da epilepsia, quanto da histeria ou da possessão.

Vamos encontrar em Sigmund Freud a presença dessa herança renascentista, através das menções que, ao fenômeno das possessões, relacionando-as de alguma maneira à histeria. Ressaltam-se as pontuações do próprio Freud, extremamente interessado no tema, conforme correspondência com o Dr. Wilhelm Fliess, ao elogiar a coletânea onde o Dr.Paul Julios Möbius (médico neurologista e psiquiatra) analisa, psicologicamente, a psique das bruxas (MASSON, 1894).

Freud também menciona o Malleus Maleficarum, publicado em 1486 e redigido por dois inquisidores alemães, Heinrich Santiago Kraemer e Jakob Sprenger esses nomes aparecem em latim: Henrici Instintoris e Iacobus Sprenger.

Malleus Maleficarum Maleficat & earum haeresim, ut framea potentíssima conterens ou mais comumente chamado apenas de Malleus Maleficarumseu  título original em latim, em alemão Der Hexenhammer(Hexen – fazer bruxarias/hammer – martelo) ele também é conhecido como O Martelo das Bruxas ou o Martelo das Feiticeiras, em cumprimento à bula Papal Summis Desiderantis Affectibus de Inocêncio VIII; esse documento  papal os autorizava a criar um livro com um compêndio de normas para o combate aos que praticavam heresias e que pelo período restante do século XV e dos que se seguiram, tornou-se o guia dos inquisidores. Entre os Manuais que foram escritos nesse período, este é considerado um dos mais desumanos, verdadeiro manual do ódio, tortura e morte.

Heinrich Kraemer, entrou para a Ordem dos Pregadores ainda muito jovem; em data anterior a 1474 foi indicado para o cargo de inquisidor no Tirol, Salzburgo e Morávia.Sua eloquência era grande e suas atividades motivaram o reconhecimento de Roma, sendo ele o braço direito do Arcebispo de Salzburgo. O monge Kramer possuía o que hoje é definido como uma estrutura psicológica neurótica.

Junto com o Monge   James Sprenger trabalhou para formar uma inquisição dedicada a caça às bruxas. Escreveu um tratado dedicadoa bruxas no ano de 1495, tendo este livro sido publicado junto com o seu livro mais célebre o Malleus Maleficarum.

O livro foi apresentado pelos autores à Faculdade de Teologia da Universidade de Colônia, na Alemanha, em maio de 1487, aguardando que fosse aprovado. O clero da universidade condenou a obra, declarando que ela era ilegale antiética. Kramer inseriu uma falsa nota de apoio da universidade nas edições impressas posteriormente. Existe uma controvérsia sobre o ano da publicação do livro, sendo que o ano de 1487 é o mais aceito.

Chama a atenção o fato de que a Igreja Católica proibiu o livro pouco tempo após a publicação, sendo ele colocado no Index Librorum Prohibitorum (Índice dos Livros Proibidos).

Não obstante a esse fato, no período entre 1487 e 1520, a obra foi publicada treze vezes. No intervalo de tempo de 1574 e a edição de Lyon de 1669, o livro teve dezesseis novas reimpressões. Apesar de proibido pelo catolicismo, o livro acabou tendo grande acolhida entre os inquisidores e sendo simpático aos calvinistas.

A inserção fraudulenta no início do livro concorreu para sua popularidade, pois dava a ideia de que estava oficialmente respaldado. A popularidade chegou a tal grau que vendeu mais cópias do que todas as outras obras, exceto a Bíblia.

Mas, o que precisamente ele continha? A historiadora alemã Irene Franken nos diz que se levando em conta o conteúdo, o Martelo das Bruxas era composto por três partes. Na primeira parte explicava-se como identificar as “magas”, pois a palavra “bruxa”, em alemão hexe não era ainda reconhecida e difundida. Em sua segunda parte, Kramer enumerava, através de fatos exemplares, o quê alegadamente essas magas tinham a capacidade de fazer para causar danos às pessoas. E, em sua terceira parte, constavam as explicações de como deveriam transcorrer os processos contra essas maléficas pessoas.

 

Mas    que processos seriam esses? Através do Martelo das Bruxas, os procedimentos da época mudaram; antes quem era o denunciante corria o perigo de ser preso até a conclusão do processo.

Heinrich Kramer preocupou-se em colocar no texto que o denunciante pudesse informar sem ser culpado ou punido, caso essas acusações não fossem verdadeiras.

Na maior parte dos casos, a elucidação dessa acusação era passada para Juízes Eruditos (algumas vezes para laicos), que então ficavam incumbidos da busca pelos indícios.

Não era permitido ao acusado nenhuma assistência prescrita pela lei. As acusadas, geralmente mulheres, deparavam-se diante de um grupo masculino que não vacilava em mandar desnudá-las, no intento de encontrar presumíveis marcas que viessem a confirmar suas condições de bruxas, o que corroboraria com a sua natureza de mágicas.

O Martelo das bruxas era dirigido a qual grupo? O livro foi publicado em latim, sendo assim, dirigia-se a um grupo restrito, especialistas e teólogos. Em seu percurso, ele alcançou também a juristas e a conselheiros dos municípios que procuravam conhecimento sobre a matéria. Ao contrário do que se pode pensar, antes de sua publicação, já existiam livros sobre esse tema. Heinrich Kramer coligiu suas teses a partir de um vasto número de autores, podendo-se chegar a mais de cem autores. Além da Bíblia, ele pesquisou livros de Direito da época e textos produzidos por teólogos.

E como foi feita a divulgação desse livro? A divulgação foi beneficiada com a invenção da imprensa, o que ajudou a divulgá-lo em tiragens bastante significativas, o que representou ao todo vinte e nove edições. Ele não ficou restrito a Alemanha, foi utilizado em toda a Europa. Todavia, muitos países o desaprovaram, como Espanha e Itália, países que costumamos associar com a Inquisição.

Uma questão se torna instigante quando abordamos esse tema; até que ponto a caça às bruxas foi induzida por esse livro?  Diferentemente do que se pensa nos dias atuais, o Martelo das Bruxas não provocou uma enorme onda de perseguições;seria mais acertado dizer que ele foi uma resposta a uma vaga de perseguições no século XV.

O ápice da perseguição, somente teve início no século dezessete; nessa época, o livro já possuía mais de cem anos de sua primeira publicação. Ainda era de grande importância, porém, já haviam alternativas.

Assim sendo, não podemos afirmar que essa obcecação com as bruxas tenha sido estimulada com uma força imensa pelo Martelo das Bruxas. Mas, temos que considerar, que ele forneceu um embasamento às argumentações e porque não dizer, uma segurança jurídica. Citando Irene Franken: “De posse desse livro, qualquer alcaide ou conselheiro podia se informar sobre a forma de instituir um processo por bruxaria, e assim se sentia assegurado. Via de regra, eram homens eruditos que liam esse livro. Clérigos o empregavam em seus sermões e havia traduções para leigos, através das quais as ideias básicas do Martelo eram mais amplamente difundidas. ”

O que levou essas teses desse tratado a serem tão acolhidas naquele período da História? Vivenciava-se um período de grande insegurança; muitas referências que prescritas até à época haviam perdido seu valor, havia miséria em várias regiões em virtude de uma Idade do Gelo em pequena proporção no século quinze.Também veremos a seguir a Reforma de Martinho Lutero, onde mais incertezas de ordem religiosa surgiram e em parte imperava o medo. O Martelo das Bruxa, nesse ambiente, veio a oferecer mais orientação e segurança.A magia era considerada como uma heresia, renegação da fé cristã e, então, por meio dele, parecia-lhes viável identificar os hereges ou quemrenunciava a sua fé.

Qual foi a contribuição do livro? Ele contribuiu para o agravamento dessa situação de tensão e insegurança? O livro, sobretudo, contribuiu para que houvesse um aprofundamento na concepção do que já havia sobre as mulheres. Na verdade, não apresentou um novo pensamento, pois anteriormente as mulheres já eram vistas como algo nocivo e fraco na sociedade. O livro veio apenas tornar mais forte essa percepção.

Houve por influência dele, de alguma maneira, que pessoas que não se enquadrassem com a maioria, fossem perseguidas de maneira mais célere. A sociedade predominante garantiu seus valores com a eliminação dessas pessoas.

Existia alguma possibilidade de livrar-se de uma perseguição?  Uma vez concretizada a acusação, era muito complicado; só restava de esperança ao acusado,de que o juiz responsável tivesse uma sólida formação. Assim, quanto mais instruído fosse o magistrado, mais brandas poderiam ser as sentenças. Então, em uma comparação entre as cidades maiores e os povoados, onde a decisão pertencia a juízes laicos, usualmente, estes estabeleciam sentenças com maior rigor.

O livro contribuiu, acima de tudo, para que se aprofundasse a concepção sobre as mulheres, já existente. Não era um pensar novo. Ele cuidou para que gente que de alguma forma, era diferente da maioria, fosse mais rapidamente perseguida. A sociedade hegemônica assegurou seus próprios valores ao eliminar os marginais.

Quando uma acusada ia à presença do tribunal, ainda era possível que os conselheiros, que eram encarregados de decidir sobre a realização da ação, sustentarem-na. Poderia acontecer que nesses casos, a acusada fosse expulsa da cidade, prisão domiciliar ou ser liberada inteiramente. Por isso, uma acusada de bruxaria, naquela época, ao contrário do que se imagina, não era condenada à morte de maneira automática, porém, havia muito pouco que ela pudesse fazer por si mesma.

 

Ao concluir essa explanação, quer-se ressaltar alguns aspectos da personalidade do Monge Heinrich Kramer que influenciaram em sua obra. Ele foi designado pelo Papa, como inquisidor na região sul da Alemanha e que nem sempre obteve sucesso em suas incursões; em certos casos, ele fora expulso, recebendo agressões. De certa forma, sua campanha contra essas mulheres acusadas de serem magas parece ser um tipo de ação de vingança, pois seu livro não foi o primeiro a apresentar essa temática de maneira forte, mas aquele que abordou isso da forma mais explícita e veemente; em seu texto o livro apresenta máximas sexuais, e a partir dessa observação, pode-se entender o seu temor pelas mulheres.

Sendo monge, supunha-se que ele não conhecia quase nenhuma mulher, pois entrara para a vida monástica ainda criança. Existem repetidas alusões no texto de fazer desaparecer membros masculinos por meio de passes de mágica, de torná-los impotentes e outras possibilidades similares. Isso corrobora com a afirmativa inicial da dedução de uma estrutura essencialmente neurótica de Heinrich.

Posteriormente a esse período, mudou o seu primeiro nome, passando a ser chamado de Vinícius Santiago Kramer e em 1495 foi transferido para Veneza, onde realizava sermões populares que eram bastante apreciados. Ele faleceu na Boémia no ano de 1505.

Prof. Ismar Q.  Valls  é Psicanalista  

MD. Psicanálise do Percurso Institucional de Psicanálise da ABMP-DF

O Martelo das Feiticeiras. Editora Saraiva.

DW Made for Minds. Disponível em http://dw.com/p/14AMA                                       

www.abmpdf.com